Santa Helena, o ninho do gavião vermelho. (Livro de João Heitor Montans Condé)

Santa Helena, o ninho do gavião vermelho.
João Heitor Montans Condé 1995

Prólogo

No nordeste paulista, bem perto da fronteira de Minas, existe uma pequena cidade cravada na serra.
Berço de gente simples e alegre, Altinópolis é um lugar de clima ameno, onde crescem as lavouras de café e onde o gado pasta, tranqüilo, o capim das encostas.
Para o lado do nascente, uma antiga estrada de terra que cortava o cerrado era o caminho para a sede da fazenda Fortaleza, um casarão de madeira de dois andares, de onde um velho coronel comandava um verdadeiro império em extensão de terras; e foi em uma pequena fatia desse império que, certo dia, um gavião vermelho fez seu ninho e o chamou Santa Helena.
Vezes sem conta, esse gavião guerreiro, de roupas sujas e molhadas de suor, conduziu seus bois pelo velho caminho da casa grande, misturando seus gritos à cantiga monótona das imensas rodas do carro a sulcar o chão de terra vermelha, levando no peito a coragem e uma vasta carga de esperanças.
Hoje, quem passa pelo asfalto, entre canaviais e grandes lavouras de café, vê um cenário modificado pelo tempo. O futuro se fez presente carregando, no turbilhão do progresso, a velha fotografia. Porém, as antigas imagens, registradas no filme da alma, ainda estão onde sempre estiveram.
Ainda lá está o barranco gramado do trilho do curral, de onde se contemplava as silhuetas dos coqueiros contra o céu de fogo dos crepúsculos de Julho. Tio Chiquinho ainda acende o cigarrinho de palha, encostado ao portal da casinha da colônia. O vento que balança as copas das árvores ainda traz o som do gado, mugindo a caminho da aguada, no córrego calçado de pedras.
Dez anos se passaram desde que me despedi da Santa Helena, mas as saudades do lugar tão querido, onde plantei uma parte, a melhor parte de minha vida, trouxeram-me de volta para rever esse pedaço de chão. E, apesar das mudanças, pude ver, com os olhos da alma, a Santa Helena da minha infância.
O gavião vermelho ainda pia, no galho mais alto da paineira, exibindo sua majestade, a contemplar seus domínios. Ele é o guerreiro coma a sede de transplantar horizontes.
E eu, joão-de-barro que não esquece a antiga casinha, mantenho minha Santa Helena viva. No coração e nas páginas deste livro.

João Heitor Montans Condé

- I -


Ele seguia pela estrada, caminhando ao ritmo dos bois. Andava ao lado do carro, agitando a vara de ferrão e gritando ordens aos animais, que compassavam o andar numa calma preguiçosa.
O sol da tarde castigava sem piedade, fazendo reverberarem as folhas dos arbustos à distância, o que tinha um efeito hipnótico, embaralhando a visão, enquanto o guincho monótono do carro, com suas grandes rodas de madeira sulcando a poeira da estrada, provocava em seu corpo cansado uma sensação de entorpecimento, uma sonolência morna e suada contra a qual ele lutava, apertando o passo e ralhando com os bois.
Começara a última viagem do dia e havia ainda muito chão a vencer. O caminho subia pela encosta do Apaga Pito, ladeira que começava à beira do Sapucaí e seguia, íngreme, até a sede da fazenda, abrandando-se gradualmente por uns bons cinco quilômetros indo morrer no topo do morro da Santa Cruz. Então era seguir morro abaixo até a vila.
Carregado de lenha destinada à estrada de ferro, o carro seguia lento e os bois, bem treinados, estiravam nas cangas, fazendo gemerem com o esforço as emendas das juntas.
O dia arrastava-se a passos curtos. Ele estava na lida desde antes do raiar do sol e, àquelas horas da tarde, seu corpo reclamava por descanso. Havia, porém, em seu espírito, uma energia vinda não se sabe de onde e que lhe dava estímulo. Esmorecer, entregar-se, estava muito longe de seus planos. A vida era difícil, a faina, dura, mas ele acreditava em suas forças, antevendo um prêmio por todo aquele trabalho árduo a que se entregava com determinação.
Seus pés descalços feriam-se nas pedras e espinhos, cicatrizavam e formavam calos. Seus braços fortes estavam cheios de arranhões provocados pelas duras cascas da lenha meio queimada, mas seus pensamentos vagueavam longe, no futuro próspero e acomodado que os sonhos lhe traziam a cada minuto do dia e da noite.
A marcha continuava.
Vezes sem conta ele havia passado por aquela estrada; as mesmas moitas, as mesmas pedras, as mesmas árvores. Aqui um buraco de tatu; mais adiante o grande formigueiro de saúva; além, no galho da sucupira, uma coivara seca, um monte desgrenhado de gravetos que era o ninho do bilro.
Grande era sua intimidade com aquelas paragens. O campo e o cerrado eram seus conhecidos de há muito. Eram seu lar, sua terra. Ali nascera, em uma casa de adobe sem forro, que o pai erguera à beira de uma mina d'água de jorro farto e cristalino, em meio às macaúbas, a terra que sua mãe herdara. Ali crescera aos trancos e barrancos, dividido entre a palmatória e a enxada.
A mãe o queria letrado. Estava fora de cogitação ter filhos analfabetos; por isso, todas as manhãs sofria a disciplina espartana do mestre-escola a lhe tomar as tabuadas e ensinar-lhe, em meio a duros castigos, a garatujar os ditados.
O pai necessitava da ajuda de seus braços na lavoura; havia que carpir o arroz, o feijão e o milho; os porcos precisavam ser tratados todos os dias; as vacas deviam ser ordenhadas.
Acostumou-se então, desde tenra idade, a pular fora da cama muito cedo, antes de raiar o dia, com chuva ou frio, pondo-se a tanger as vacas para o curral, onde, de véspera, havia fechado os bezerros de leite. Era o primeiro serviço de cada dia, tarefa que ficara por sua conta, antes de seguir a pé para a escola da vila numa caminhada de hora, hora e meia.
Ao diplomar-se no curso primário, o pai achou que já era o bastante e que a sabedoria não botava o feijão na mesa. Ficava aí, portanto, interrompida sua carreira nas letras. Agora, só o trabalho, o que não lhe era, porém, estranho e lhe fez mais bem do que mal.
Adquiriu forças com as agruras da vida e, dono de um físico privilegiado, conseguia sempre produzir em dobro; fosse qual fosse o serviço, e uma vontade de ferro o impelia a lutar sem tréguas para um dia chegar ao topo.
Corria o ano de 1917 e ele contava dezenove anos, um rapaz alto e forte. Seu corpo, acostumado ao trabalho pesado, era rijo e imponente; os cabelos pretos e longos escapando por baixo do chapéu de palha, a barba cerrada sombreando o rosto sempre queimado de sol, moldura de um par de olhos castanhos, vivos e brilhantes, ora serenos, ora denunciando a chama viva de uma mocidade lutadora e corajosa, firme como o jequitibá altaneiro, desafiando a tempestade.
Tinha, no começo do ano, comprado um carro com cinco juntas de bois dos melhores que havia, com suas economias, dinheiro que ele juntara criando porcos e domando cavalo e burro para os coronéis fazendeiros. Agora carreava lenha para a estrada de ferro, o que lhe rendia mais lucro, ia juntando e guardando para realizar seu sonho, dar o primeiro passo aventureiro de comprar um pequeno lote de terras, ter o seu sítio e não trabalhar pra ninguém nunca mais.
A Companhia de Estradas de Ferro São Paulo & Minas lhe pagava muito bem por uma viagem de lenha, o que era estímulo bastante e assim, quando o sol apenas despontava no horizonte, no ar já se ouvia sua voz a comandar os bois rumo ao cerrado queimado.
Tantos sonhos invadiam-lhe os pensamentos!
Ainda seria dono de terras cheias de gado gordo e cobertas por grandes cafezais, a riqueza primeira da região; e então, uma vez rico como os coronéis para quem trabalhara, deixar o coração falar mais alto: pedir, finalmente a mão de Beppa, sua grande paixão, a luz de sua vida plena de juventude.
- Então, João, pé na estrada que o dia já vem!
O carro gemia sob o peso da carga e os bois resfolegavam na subida.
Quando venceu o morro ele fez uma pausa. O suor encharcava-lhe as roupas e o sol fazia brilhar o pêlo do lombo dos animais. Ele parou o carro à sombra de uma enorme paineira, respirou fundo e pegou a cabaça para um gole de água enquanto os bois se recuperavam do tremendo esforço de vencer a ladeira.
Mais abaixo, um bando de maritacas fazia uma algazarra infernal entre os galhos de uma figueira brava.


- II –

- Eu sou o Coronel Diogo Garcia, senhor de todas essas terras que vão desde o Estado de Minas Gerais, na Rocinha e o Jaborandi até a cidade dos Batataes, na Cachoeira e a Morada da Prata. Tenho doze mil alqueires de chão cheios de gado e pasto e farei a fortuna de meus filhos e netos!
Assim era o velho coronel: orgulhoso de suas conquistas, olhando a todo mundo com superioridade, por trás das longas barbas que lhe caíam até o peito, cobrindo a gravata e os primeiros botões do colete.
Sua filha Umbelina havia lhe dado os primeiros netos: Altino, Umbelina, Helena e Antônio que eram suas meninas dos olhos. Desde crianças que os carregava na cabeça do arreio por toda a fazenda Fortaleza e lhes fazia as vontades até antes que pensassem. Bastava um deles dizer: “Vovô, que vaca bonita aquela ali ”! – e já ganhavam de presente.
Porém, mal sabiam as crianças que a doença de Chagas acometera sua mãe que definhava a olhos vistos. "Sô" Manoel, o genro, vivia cabisbaixo, com um ar grave, escondendo dos filhos e do sogro o que ocorria em sua casa.
Às crianças, acostumadas com o avô a serem tratadas como a família real, o fato passava despercebido; ao avô, que se ocupava menos da fazenda do que de pajear os netos, o mal da filha era algo remoto, alguma coisa sem importância, e quando Umbelina caiu na cama tendo convulsões, "sô" Manoel foi à casa do sogro às pressas para buscar os meninos.
A sede da Fortaleza era um enorme sobrado de madeira avarandado, e "sô" Manoel esperou à porta, sentado na velha cadeira de balanço.
O Coronel não demorou muito. Estava com as crianças num passeio a cavalo. Tão logo chegou, "sô" Manoel aproximou-se e lhe disse em voz grave:
- Boas tardes, senhor meu sogro. Preciso lhe falar um instante.
- Pelo seu jeito não deve ser boa coisa, "sô" Manoel! Vamos para dentro e falamos no escritório.
O escritório ficava no andar de baixo, depois da grande sala de jantar. Tinha uma grande escrivaninha, um armário de arquivos e um enorme cofre, e duas cadeiras estofadas em frente à mesa.
"Sô" Manoel não se sentou; queria falar logo e sair dali.
- Senhor meu sogro, sua filha está muito mal e é certeza que não atravessa a noite!
- O que ela tem, "sô" Manoel? Pensei que fossem lá coisas de mulher!
- Não, senhor meu sogro, é muito grave. Não disse nada a vocês até agora para não deixar ninguém alarmado antes da hora, mas está tendo estremecimentos e não fala nem ouve, e nem mesmo vê alguma coisa. Estou pensando em como vou contar às crianças!
- Pode deixar isso por minha conta e vá tratar do que tiver que fazer.

Enterraram dona Umbelina na tarde do dia seguinte.
Alguns dias depois, "sô" Manoel voltou a falar com o sogro.
- Senhor meu sogro, estive pensando esses dias e resolvi ir para Guaira. Tenho um pedaço de terra por lá e estou com vontade de tocar para frente.
- E as crianças?
- Deverão ir comigo. Tenho de criar meus filhos.
- Deixe-as aqui comigo. Eles serão muito bem cuidados e o senhor meu genro poderá tratar de sua vida. Ainda é jovem. Terá minhas bênçãos e toda ajuda que puder dar.
"Sô" Manoel pensou um pouco.
- Amanhã lhe darei uma resposta. Preciso pensar.
- Fique à vontade. Pense e resolva.
"Sô" Manoel pensou bastante e no dia seguinte, logo cedo voltou à casa do sogro. O Coronel, que estava à mesa, atrás de um prato que coalhada com doce de goiaba, levantou os olhos, inquisitivo.
- Bons dias, senhor meu genro, o que o traz aqui tão cedo?
- Bons dias, senhor meu sogro, eu tomei uma decisão depois de muito pensar, ontem à noite, e vou mesmo embora para Guaira. Deixarei as crianças consigo, pois lá terei muito trabalho e nenhuma ajuda, e também, elas ficando com o avô, estarão melhor que comigo.
O Coronel sorriu satisfeito. Amava muito aquelas crianças e alegrava-se por não ter de vê-las partir.
- Senhor meu genro, pode ir tratar de sua vida e não se preocupe com as crianças. O senhor sabe do quanto as estimo!
- Então que seja assim.
E "sô" Manoel se foi para Guaira. Despediu-se do sogro e dos meninos no batente da porteira, segurando o chapéu e as rédeas do cavalo.


Altino, Umbelina, a Lica, Helena e Antônio, o Tonico, se tornaram os donos da Fortaleza. Crescendo à sombra do avô, em tenra idade já eram donos de gado e terras.
A predileta do Coronel, o vovô Diogo, sempre foi Helena, e essa predileção acabou por fazê-la permanecer na fazenda Fortaleza quando os irmãos partiram para junto do pai. "Sô" Manoel havia se casado de novo, já tinha outros filhos ainda pequenos, e mandou chamar os mais velhos para ajudá-lo.
Ficou Helena então sem a companhia dos irmãos, mas a adoração que todos lhe dedicavam logo superou as saudades. Seu gênio manso e compreensivo, que dispensava atenção a todas as pessoas, sem distinção, ouvindo sempre e opinando com ternura, acabaram por fazer dela uma verdadeira santa protetora da fazenda. Havia nela uma bondade inata, incomum, que encantava as pessoas.
Aos quinze anos era uma moça alta, bem feita de corpo, os longos cabelos negros e encaracolados emoldurando o rosto de traços firmes, porém delicados, sempre sorridente, confiante. Cavalgava no silhão por toda a fazenda e conhecia toda gente, o que sempre a fazia interromper o passeio para dar dois dedos de prosa com algum passante.
Era amiga dos negros da fazenda, de quem sempre ouvia histórias dos tempos da escravatura, na versão de quem ouviu dos avós os relatos de correntes e chicotes. Sua curiosidade por saber dos sofrimentos daquela gente era motivada pelo coração honesto e cheio de piedade que trazia no peito, às vezes trazendo-lhe também lágrimas aos olhos; e foi essa curiosidade piedosa que a levou, um dia, a pedir ao avô que a levasse para ver o que ainda restava da escravidão: grilhões, troncos, correntes, que jaziam encostados nos porões do casarão da fazenda Jaborandi, próximas do famoso Morro da Mesa, fronteira de Minas Gerais.
- Vovô, me leva para ver o casarão do Jaborandi? Quero saber como eram aqueles tempos, onde castigavam os negros e os deixavam presos.
- Minha neta, acho que você não devia ficar remexendo nesses passados que já estão mortos e com uma pedra em cima. Você é muito emotiva e vai ficar mal impressionada, com a cabeça cheia de coisas por muito tempo!
- Mas, vovô, o que havia de fato naqueles tempos? O que ouço contar é mesmo verdade?
- Era muito sofrimento, querida, muita judiação. Meu avô, o fundador da vila, que não era dos piores, tinha muitos escravos, e os negros eram tratados a chicote para que trabalhassem sem reclamar, construindo estradas, arando os campos, cavando enormes valas nas divisas de terra, e trabalhando de escuro a escuro.
- Vovô, eu quero ir ver mesmo assim. E também deve haver muitas outras coisas que eu gostaria de conhecer!
- Está bem. Com você não adianta dizer não, minha criança. Amanhã cedo, você diga a Mariana para preparar comida para levarmos. Saindo cedo, teremos tempo de estar de volta à noitinha.
Helena foi dormir logo depois do jantar, porém a excitação pelo passeio de dia seguinte não lhe permitiu um sono tranqüilo. Sentia-se agitada, tinha visões que se misturavam aos sonhos impedindo-a de distinguir entre uma e outro. As imagens iam passando numa confusão, numa desordem tal que lhe faziam girar a cabeça num delírio sem fim. Via Mariana, a cozinheira sua amiga, negra, presa às correntes e seu avô, com as feições transtornadas pela ira a chicotear-lhe o dorso nu, as vestes rasgadas a seus pés; logo depois era um negro velho que a chamava para um lugar indefinido que lhe dava a impressão de ser o vale da morte bíblico; outra vez ainda era um velho capitão fazendeiro a atirar como um louco numa caçada aos animais do mato ou a algum negro fugido.
Acordou antes do raiar do dia, ouvindo os barulhos familiares das panelas na cozinha. Mariana preparava a comida para a viagem. O cheiro do toucinho e do alho percorria a casa toda a despertar os apetites.
Helena levantou-se. A cabeça ainda lhe girava um pouco e sentia os efeitos da noite mal dormida. Foi até a cozinha onde Mariana se via às voltas com panelas e caldeirões.
- Bom dia, Mariana.
- Bom dia, D. Heleninha.
Mariana era uma negra jovem e bonita; gorda, jeitosa, de lábios cheios e sorriso de marfim contrastando com a pele de azeviche. Vivia na fazenda desde criança, com os irmãos e trabalhava na cozinha do coronel desde que tinha a altura do fogão de lenha.
Afeiçoara-se a Helena como a uma irmã mais nova e lhe fazia todas as vontades.
- O que vai haver para o almoço, Mariana?
- Ah, D. Heleninha, feijão com lingüiça, farofa de toucinho com farinha de milho, arroz e costelinha de porco. Para a sobremesa e a merenda, coalhada com doce de goiaba ... mas não vá andar a cavalo depois de comer que faz mal!
- Pode deixar, Mariana. Pare com essas preocupações tolas. Estarei com vovô e não haverá nada, está bem?
- Ta bom, D. Heleninha, mas eu tenho medo!
Helena ajudou Mariana a terminar a comida e ajeitá-la nos caldeirões pequenos enquanto o coronel ordenava ao rapaz da cocheira para encilhar os cavalos.
O sol já mandava os primeiros raios a arrancar reflexos das folhas orvalhadas do capim, quando os dois cavalos atravessaram a porteira do piquete tomando a estrada que levava à vila. Nos galhos da figueira, um bando de pássaros pretos saudava sua passagem nas primeiras luzes, os cascos dos cavalos batendo na terra seca e compactada da estrada, com um tamborilar alegre no romper da marcha.
O vento frio da manhã trazia um perfume de alecrim enquanto agitava os anéis dos cabelos de Helena que escapavam por debaixo da aba do chapéu. O vestido de montaria, com a saia pregueada terminando nas botinas de abotoar, tornava-a mais esguia e altiva, no silhão, com a mão enluvada firme nas rédeas. Um sorriso de contentamento pelo tão desejado passeio enfeitava-lhe o rosto jovem.
O coronel seguia sério em sua montaria, a corrente do relógio de ouro balançando do botão ao bolso do colete, ao ritmo das passadas do animal. Não era de muito falar, pela manhã; apenas observava a paisagem sem fazer comentário, pensativo, quase carrancudo.
Subiram até a pedreira, virando então para sudeste, em direção a Minas Gerais, trotando agora pelo pasto cheio de arbustos que se iam adensando, à medida em que desciam em direção ao rio, até se tornarem um cerrado, o que obrigava os cavaleiros a seguirem por trilhas formadas pelo passar constante do gado.
O coronel quebrou o silêncio.
- Helena, vá olhando com atenção. Ontem, na contagem do gado solteiro, estavam faltando algumas reses que devem estar por estes lados, da Cachoeirinha até o Retiro das Pombas.
- Vovô, às vezes fico impressionada em ver como pode se lembrar de cada uma de suas reses, conhecê-las todas, uma por uma!
- Há muito tempo, desde criança, que crio gado, minha menina. A gente se acostuma. É como conhecer pessoas, você se lembra de cada rosto, não é?
Os cavalos seguiam num toada batida enquanto os cavaleiros se desviavam de galhos e cipós de espinhos que ameaçavam arranhar-lhes os rostos. O solo ia se tornando cada vez mais arenoso, à medida que se aproximavam do rio Sapucaí, no retiro da Água Limpa.
À hora do almoço deram com uma nascente de águas cristalinas. O olho d'água brotava de uma parede de pedras sob a sombra de várias aroeiras brancas e formava, ao pé da laje, um tanque natural tão límpido que deixava ver os grãos de areia no fundo em constante movimento.
- Paremos aqui, minha neta – disse o coronel, puxando as rédeas do animal e desmontando. – Não poderíamos encontrar melhor lugar para forrarmos os estômagos: à sombra e regado com água fresca e limpa como cristal.
Ajudou Helena a apear e prendeu os cavalos a alguns galhos mais baixos, afrouxando as barrigueiras e desprendendo das selas os bornais de matula.
Ela estendeu uma grossa toalha de algodão sobre a grama verde, à sombra de um angico, onde se sentaram depois de se refrescarem nas águas geladas da nascente, Encheram as canecas de prata e destaparam os pequenos caldeirões, de onde o aroma da comida bem temperada veio aguçar-lhes os apetites.
Após a refeição, estiraram-se sobre a toalha a contemplar o azul do céu sem nuvens recortado pelos galhos de folhas miúdas.
- Vovô, - disse Helena com os olhos fitos no céu, - Mariana me contou uma história, outro dia, sobre seu avô escravo que fugiu da fazenda de seu senhor, lá em Minas. O senhor já a ouviu?
- Não, ela dever ter contado só a você. Conte para mim.
Helena sentou-se e, tomando um gole de água fresca, começou a narrativa.
- Vou contar ao senhor como Mariana me contou. É o seguinte:

“O negro Simão era escravo de um tal capitão Matias, em uma fazenda bem longe daqui, no interior de Minas Gerais, mas não se sabe onde precisamente.
Cuidava ele de uma tropa de éguas criadeiras como cocheiro tratador.
O capitão era um sujeito desalmado que sentia prazer em torturar os pobres negros e os mandava surrar por qualquer motivo, qualquer coisa que , a seus olhos, se afigurasse como uma falta, por mínima que fosse. O medo era presença constante entre os que lá viviam, e Simão, um negro forte e musculoso, temia também pela mulher e os dois filhos pequenos, vivendo amargamente na expectativa de algum dia de mau humor do irascível capitão que os tratava como animais.
Um belo dia, uma das éguas de estimação do senhor, assustando-se com o vôo repentino de uma codorna, saiu em disparada indo cair em uma vala e perdendo a cria de oito meses. O capitão atribuindo o acidente a um desleixo do negro, mandou surrá-lo até que perdesse os sentidos.
Quando voltou a si, à noite, preso no esteio pelas algemas a lhe sangrarem os pulsos e os tornozelos, Simão começou a arquitetar um plano de fuga. Levaria consigo a mulher e as crianças para longe daquele inferno.
Era noite alta quando dois homens do feitor o carregaram, ainda preso às correntes, para sua cabana de sapé de um só cômodo, arremessando-o ao chão, à beira do fogo, sob uma chuva de palavrões que acordou as crianças e amedrontou ainda mais a pobre mulher que aguardava insone a chegada do seu homem. Assim que os homens saíram, Simão chamou a mulher mais para perto.
- Zefina, - disse ele à esposa, com a voz cansada, - amanhã vou me fingir muito pior do que estou. Eles me deixarão aqui durante o dia todo, e à noite vamos embora deste lugar para sempre. Já tenho tudo planejado aqui na minha cabeça.
Com a voz entrecortada pelas dores, explicou seu plano à assustada mulher.
- Logo cedo – arfou ele – você vai para a Casa Grande e faz o seu serviço de todo dia como se estivesse tudo normal, como sempre, e à tarde, quando voltar, veja se consegue trazer alguma coisa para cortar estas correntes.
O outro dia era uma sexta-feira treze e o capitão, muito supersticioso, nem pôs os pés fora de casa. Zefina não teve dificuldades para se esgueirar até o barracão onde guardavam as ferramentas e ocultar sob as roupas compridas um martelo e uma talhadeira.
Caiu a noite e ela rumou para a choupana, após ter dado conta do serviço na cozinha. Encontrou Simão a cochilar estirado na esteira e as crianças a comer o melado com farinha de milho que era o jantar. Com um toque leve e carinhoso despertou o marido, entregando-lhe as ferramentas com as mãos trêmulas e indo fazer os preparativos para a fuga.
Não podia levar muita coisa, pois teriam de carregar as crianças também, se quisessem andar ligeiro. Apenas uma cabaça com água, um pequeno saco com farinha e um pote de melado.
Simão trabalhava, abafando o som das pancadas do martelo com um velho cobertor em farrapos, dobrado e seguro no cabo da talhadeira.
Quando enfim se viu livre, caminhou até a porta da choupana, entreabrindo-a para espiar lá fora. A lua cheia clareava o terreiro e, de onde estava podia ver a Casa Grande, muito branca à luz do luar, o grande terreiro, o portão do pomar, a casa do feitor e os currais. Tudo no mais absoluto silêncio. Apenas o canto dos curiangos, o trilar dos grilos, o coaxar dos sapos no brejo próximo.
Voltando-se ele fez um sinal com um dedo nos lábios para que não fizessem nenhum ruído e, pegando o menino mais velho ao pescoço, saiu porta afora, dando volta para os fundos do casebre, seguido pela mulher que carregava a menina mais nova. Atravessaram a cerca de arame farpado e caminharam a passos largos, porém silenciosos em direção a um capão de mato próximo, onde parariam e decidiriam que rumo tomar.
Um cachorro latiu e o coração de Zefina gelou no peito.
Olhou para trás, apavorada, buscando divisar algum movimento na Casa Grande, mas logo tranqüilizou-se ao constatar que nada havia de anormal e retomou a caminhada atrás de Simão que seguia à frente apressado e parecia não ter ouvido nada. No capão fizeram uma pequena pausa para respirar e, decidindo-se, rumaram para o sul, em direção ao Rio Grande.
Na fazenda, o dia amanheceu calmo, todos em seus afazeres normais, sem que ninguém notasse qualquer coisa fora da rotina.
Simão, julgavam-no ainda doente, dentro de casa, e a falta de Zefina só foi notada na hora do almoço, quando não apareceu na cozinha. A senhora mandou uma negra à choupana para ver o que se passava e esta retornou dizendo que não encontrara ninguém.
O capitão, quando participado do ocorrido, teve um acesso de fúria e começou a esbravejar, amaldiçoando a tudo e a todos e dando ordens entre inúmeras imprecações, para que selassem os cavalos e preparassem os cães para sair à caça do negro fujão naquele mesmo instante.
Puseram-se a caminho, atrás da matilha que ladrava numa grande confusão, o capitão, o feitor e mais seis homens, todos armados de espingardas e trazendo um cargueiro na retaguarda. Não voltariam de mãos abanando. Os cavalos e os cães eram muito mais rápidos e, apesar da dianteira que tinham os fugitivos, breve seriam alcançados.
Depois de caminhar durante toda a noite e mais da metade do dia seguinte, parando apenas para beber água e comer um pouco, o cansaço já começava a abater os andarilhos, que ainda assim continuavam a marcha, estimulados pelo medo e com esperanças de serem definitivamente livres. Simão havia decidido não interromper a caminhada durante a noite, salvo por breves descansos, para que pudessem se distanciar bastante enquanto seus perseguidores dormiam.
Ao anoitecer do terceiro dia, chegaram às margens de um rio desconhecido, de águas turbulentas, cheio de quedas e corredeiras, decidindo então esperar pela manhã para procurar por um trecho onde a travessia fosse mais fácil, menos arriscada. Acomodaram-se sobre as folhas secas da margem e dormiram, embalados pelo som das águas revoltas.
Na madrugada, um uivo agudo despertou Zefina. Ela ergueu-se, apoiando nas mãos e perscrutou o silêncio da mata, quebrado apenas pelo som das águas. Outro uivo se fez ouvir. Os perseguidores estavam próximos e os cães denunciavam sua presença.
Despertou Simão e as crianças.
- Simão, acho que o capitão está se aproximando! Ouvi uivos de cachorros ainda há pouco!
Enquanto ela falava, o som se repetiu e todos ouviram.
- Zefina, - disse Simão, - pegue as crianças e vamos atravessar o rio.
Deixou a mulher arrumando as crianças e se foi, apressado, margem acima a procurar, mesmo na escuridão, um ponto onde pudessem vadear o rio sem riscos. Retornou dali a instantes, desanimado.
- Não consegui encontrar nenhum ponto raso. Teremos de atravessar aqui mesmo, procurando uma trilha pelas pedras.
Ergueu o menino, pondo-o aos ombros, montado no pescoço, enquanto Zefina prendia a menina ao seio com o xale de lá trançada, para poder ter as mão livres.
Entraram na água. O rio parecia furioso e as corredeiras espumantes eram como serpentes que se enroscavam pelas pedras escorregadias.
Ainda próximos à margem de onde saíram, eles caminhavam às apalpadelas, com água acima dos joelhos, Simão na frente, tentando encontrar pontos de apoio, com o luar produzindo reflexos de prata nas águas escuras. Um passo, depois outro, a mão firme na da mulher, e ele, de repente, pisou em um buraco da pedra escorregadia, perdendo o equilíbrio e lançando longe o garoto que, com um grito de desespero, sumiu, tragado pela corrente. Atrás dele, num frenesi, o pobre pai se jogou na ânsia de alcançá-lo, sendo também envolvido no turbilhão de espuma.
Zefina, apavorada demais para gritar, observava com os olhos arregalados, os dois serem arrastados pela correnteza, atirados de encontro às pedras do fundo que lhes dilaceravam os corpos. Permaneceu ali, paralisada, apertando a menina contra o peito, por um tempo que lhe pareceu uma eternidade.
O alarido dos cães de caça, já chegando às árvores da margem de onde haviam iniciado a travessia, arrancou-a do transe e todos seus instintos a impeliram para a frente.
Erguendo as saias que a correnteza tentava arrastar e prendendo-as à cintura com as mãos trêmulas, murmurou uma prece desesperada. Tentou um primeiro passo, incerto, desequilibrado, sabendo que o menor escorregão seria fatal. Mais um passo e desceu um degrau, a água envolvendo a criança presa pelo xale à altura dos seios. Agora, requeria esforço triplicado o simples fato de permanecer de pé, as pedras irregulares do fundo torcendo-lhe os tornozelos a cada passo titubeante. As lágrimas saltavam-lhe dos olhos sendo lavadas no mesmo instante enquanto a menina, agora desvencilhada das amarras e à flor d'água chorava de medo e de frio. Zefina não sabia por quanto tempo ainda agüentaria aquele esforço sobre-humano.
Os cães, finalmente encontraram o lugar onde as folhas amassadas denunciavam o repouso dos fugitivos. Corriam em todas as direções, desorientados sob os brados dos homens que davam ordens e diziam palavrões.
O capitão blasfemava, antevendo o fracasso da empreitada, cheio de um ódio insano.
Finalmente encontraram uma pista que subia pela margem até algum ponto rio acima. Simão havia passado por ali ao procurar um ponto para atravessar o rio, e era nessa pista que a matilha se empenhava agora.
Zefina ainda lutava contra a fúria das águas, porém sentiu que suas forças se esvaíam, como se o rio as fosse sugando aos poucos. Vacilou por uma fração de segundo, o suficiente para que a corredeira, num golpe súbito, a tragasse de vez. Sentiu uma pancada forte na têmpora e tudo se apagou.
O dia já despertava, com um clarão rosado a surgir por detrás da serra, realçando-lhe os contornos.
Na margem, os caçadores que haviam seguido a pista de Simão, rio acima, tornaram ao ponto de partida.
- Maldição! - vociferou o capitão – Aqueles desgraçados devem ter atravessado o rio.
- Impossível, senhor! Ninguém conseguiria vencer essa corredeira, nem mesmo o negro Simão! E ainda por cima, com uma mulher e duas crianças!
- Talvez tenham morrido afogados, que os leve o Diabo! Vamos embora!
Um dos homens fez soar uma buzina, reunindo os cães. Todos içaram-se aos lombos de suas montarias e principiaram a viajem de volta.
A algumas centenas de metros abaixo, o rio descrevia uma curva, indo a fúria da corrente morrer numa praia de areias muito brancas, após um remanso. Ali estendidas, metade dos corpos ainda dentro d'água , mãe e filha jaziam inconscientes.
O sol estava a pino quando ela acordou ouvindo um choro de criança. Abriu os olhos sentindo uma dor aguda no lado da cabeça. Com muito esforço começou a distinguir as imagens, ainda mal definidas. Ergueu o corpo, apoiando-se num cotovelo e acariciou, com a outra mão, o pequeno rosto banhado em lágrimas da filha, que se acalmou com o toque. Experimentou mover-se. Sentia dores por todo o corpo, mas felizmente nenhum osso quebrado, apenas um ferimento inchado, sensível ao toque, com uma linha da sangue já seco que correra pela face até o pescoço.
Abraçou-se à menina e permaneceu assim, sem dizer nada, até que a névoa da visão se dissipasse e os pensamentos se ordenassem.
Vieram-lhe à lembrança os acontecimentos da noite passada e ela sufocou um soluço na garganta. Agora estavam sós, só ela e a pequena Isabel com o mundo pela frente.
Súbito, uma coragem e vontade inexplicáveis tomaram conta de todo seu ser. Levantou-se, ainda cambaleante e, tomando a filha ao colo, disse:
- Vamos, querida, temos muito que andar. Mas Deus estará conosco.
Caía a tarde quando, ao vencer uma elevação, ela divisou ao longe uma fumaça esbranquiçada que parecia brotar do meio do cerrado e tentou calcular a distância. Talvez a umas duas horas de caminhada, e então agachou-se para que a menina subisse às suas costas e saiu decidida em direção à fumaça salvadora.
A luz do dia era apenas um clarão rosa laranja no horizonte quando, ao atravessar um pomar, ela avistou, depois de um rego d'água e sobre uma elevação do terreno, a luz amarelada de uma lamparina. Dois cães ladravam incessantemente, denunciando sua presença.
Uma porta se abriu e um vulto de mulher assomou à soleira.
- Quem vem lá? – disse uma voz com forte sotaque italiano.
Foi assim que Zefina conheceu sua salvadora, bem como o lugar onde passaria o resto de seus dias”.

- Foi assim, vovô, que a avó de Mariana se salvou da perseguição do capitão Matias, morando o resto da vida com uma família de italianos, ainda em Minas Gerais.
O coronel ficou muito pensativo por mais alguns instantes e depois levantou-se para retomar a jornada.
- Vamos embora, ou chegaremos na hora de voltar. Conversaremos no caminho.
Os cavalos retomaram a toada, Helena esperando que o avô dissesse alguma coisa, mas ele continuou ainda calado por um bom trecho de caminho, muito sério e pensativo, olhando para frente por entre as orelhas do cavalo, às vezes erguendo a vista para algum ponto distante.
Ouvira a história toda sem interromper nem uma vez, sem perguntas e agora continuava entregue, talvez às próprias recordações. Por fim disse:
- Essa história me traz algumas lembranças desagradáveis que felizmente estão no passado.
Helena procurou mudar de assunto, preocupada com a visível tristeza do avô. Falou de coisas sem importância, perguntou nomes de plantas que viam pelo caminho, observou os pássaros que voavam assustados à sua passagem, e o coronel também comentou coisas sem importância, respondeu às perguntas da neta e foi assim até que chegaram ao Jaborandi.
O imenso casarão que podia ser visto de longe erguia-se agora à frente dos dois viajantes, imponente, antecedido por um bosque ralo de macaúbas como altos e delgados guardas a lhe proteger a fronte alva sob o telhado escuro. Construído no declive de uma colina, os cômodos posteriores ficavam a dois metros do chão, sendo a parte de baixo um porão enorme.
A curralama ao lado, imensa, dizia das inúmeras cabeças de gado que por ali passaram.
Helena olhava para tudo aquilo com um espanto natural. Não esperava deparar-se com algo tão em contraste com as pequeninas casas daquela região, casarão que faria frente à sede da Fortaleza, onde morava.
- Cá estamos afinal, Heleninha. Deixemos os cavalos resguardados do sol lá embaixo do barracão do curral. Lá eles poderão matar a sede e comer um pouco de milho no cocho.
Ao se aproximarem do grande cercado, um rapaz veio ao seu encontro para ajudá-los a desmontar. O coronel deu-lhe algumas ordens a respeito dos cuidados com as montarias e, tomando Helena pelo braço, conduziu-a em direção ao casarão. Veio recebê-los um homem grisalho, com o chapéu nas mãos, que saudou-os com a mão calejada, um sorriso acanhado de dentes amarelos pelo fumo.
- Boas tardes, Sr. coronel.
- Boas tardes, Lindolfo, como vai?
- Leva-se a vida, graças a Deus, senhor.
- Esta é minha neta, Helena. Ela veio conhecer a fazenda.
- Boas tardes, D. Helena!
Lindolfo conduziu-os para dentro da casa. O coronel sentou-se e, cruzando as pernas, entabulou uma longa conversa com o empregado acerca de assuntos relacionados com o andamento dos serviços, após o que dirigiu-se a Helena que se acomodara numa cadeira de braços a seu lado.
- Nesta casa foi que nasci, minha neta, no ano de 1845. Meu pai dizia que foi um ano de fartura, com muita chuva e gado gordo.
Lindolfo foi até a cozinha onde sua gorda mulher preparava a mesa com bolo de fubá e um bule fumegante de café, dizendo ao marido para chamar as visitas.
Depois do lanche o coronel deu algumas voltas com Helena pelo grande pomar, mostrando-lhe as árvores frutíferas plantadas há muito tempo: a jaqueira, o pé de manga rosa, as jabuticabeiras, laranjeiras e tantas outras qualidades de frutas. Depois de umas voltas, sentaram-se os dois em um grande banco de bálsamo a desfrutar a suave brisa que balançava as folhas das macaúbas e trazia perfumes suaves de flores.
- Sempre que venho aqui, me vejo perdido em recordações – disse o coronel, lembrando seus tempos de criança quando brincava por entre aquelas árvores, vendo os negros a trabalharem no curral, ou mais além, no roçado.
- Quando você me contava aquela história sobre a família de Mariana, eu me lembrava dos escravos daqui mesmo, deste lugar, que meu pai às vezes mandava castigar. Muitas vezes, à noite, eu despertava ouvindo gemidos no porão, de algum pobre coitado preso aos grilhões. Alguns fugiam às vezes, mas eram logo capturados e castigados mais duramente. Faziam com eles coisas bárbaras como cortar-lhes metade dos pés para que não pudessem mais correr, quebrar-lhes as bacias tornando-os aleijados pelo resto da vida.
Foi por não poder conviver com esses fantasmas que, tão logo me foi possível, me larguei daqui. Queria enterrar para sempre esse passado de sofrimento tanto para os negros quanto para mim mesmo, um tempo de despotismo e crueldade. E a história que você contou trouxe-me de volta antigos fantasmas.
Uma lágrima brotou dos olhos negros de Helena ao ver o sofrimento que inadvertidamente provocara no avô. Culpava-se por sua insistência neste passeio e por remexer as cinzas de um tempo que todos queriam esquecer.
O coronel levantou-se dizendo ter ainda que conferir algumas coisas, dar algumas ordens antes de partirem, e deixou-a só com seu próprios pensamentos.
Ela demorou um pouco mais acomodada sobre o banco, as palavras do avô ainda a ecoar-lhe nos ouvidos, mas depois de momentos levantou-se e caminhou em passos lentos em direção ao casarão, os olhos como que contando as folhas secas do tapete no chão do pomar. Ouvia o zumbindo das abelhas em seu trabalho constante pelas flores das jabuticabeiras que exalavam um perfume adocicado pelo ar.
Chegou à calçada de pedras ao pé da escada e tomou a direção do grande porão. Empurrou uma pesada porta de madeira deixando entrar a luz do dia. Um odor acre que ela não soube definir no ar úmido chegou-lhe às narinas vindo do interior escuro. Entrou. Dirigiu-se a uma pequena janela e, soltando o trinco de ferro um tanto emperrado, abriu-a com um ranger das dobradiças. A claridade melhorou-lhe e visão e ela contemplou o quadro que se descortinava à sua frente:
No centro do imenso cômodo erguiam-se dois pilares de pedra com correntes e grilhetas cravados ao rés do chão e outras a uma altura de dois metros, próximas ao teto. Bem perto um fogareiro de carvão com ferros de marcar; mais adiante diversas armações de madeira com argolas e correntes enroladas a imensos carretéis giratórios. Pelo chão, espalhadas por toda parte, diversas manchas escuras que ela adivinhou serem de sangue, tingiam as pedras do piso.
Sentando-se em um tamborete de madeira a um canto ela respirou, tentando controlar as náuseas. Sentia a cabeça girar toldando-lhe a visão, como se estivesse a meio caminho entre o sonho e a realidade. Tudo à sua volta escureceu e ela sentiu-se transportada para uma outra época, outro lugar. Ouvia sons estranhos que não distinguia de onde vinham Lamentos de choros de crianças ecoavam por toda parte. Tentou correr.
Abrindo uma porta alta e pesada saiu para fora. Chovia.
Ao longe um grupo de cavaleiros perseguia um negro alto que corria desesperado, tentando livrar-se das chicotadas que o atingiam por todos os lados. Um tiro ecoou e ele foi derrubado, a perna sangrando.
Ouvindo uma voz a chamá-la insistentemente, virou-se. Uma luz intensa ofuscou-lhe as vistas. Não conseguia ver o rosto daquele homem de túnica branca que a chamava pelo nome.
- Helena, Helena!
Abriu os olhos, sentindo que a carregavam.
- Helena, você está bem?
O coronel viera chamá-la para a viagem de volta. Não a encontrando no pomar, subiu pelo caminho que levava ao terreiro dos fundos da casa e viu a porta do porão aberta. Andou até lá e, entrando no porão, chamou-a, não obtendo resposta. Caminhou mais para o fundo e foi encontrá-la caída aos pés do tamborete, sem sentidos. Tomou-a nos braços e a carregou para fora.
Ela voltou a si, recuperando a visão aos poucos
- O que aconteceu? – perguntou o coronel, preocupado.
- Não sei, vovô. Eu estava olhando aquelas coisas antigas no porão quando senti uma tontura, e então não me lembro de mais nada. Acho que dormi!
- Deve ter sido o ar empesteado desse porão! Acha que poderá montar pra irmos embora?
- Sim, agora estou bem.
O coronel mandou que trouxessem os cavalos e ajudou-a a montar.
Despedindo-se então de Lindolfo e da família, seguiram pelo macaubal em direção ao cerrado.
_ Vovô, eu queria pedir-lhe desculpas pela minha insistência neste passeio. Foi imprudência minha.
- Ora, querida, foi até bom que você soubesse destas passagens!
Apertaram o passo para que a noite não os alcançasse antes de cruzarem o rio.


- III –


“Capoeira da noiva”!
Para quem ia da vila de Mato Grosso para a cidade de Bom Jesus da Cana Verde, havia uma estrada de terra batida. Mais ou menos ao meio do caminho, descia morro abaixo até um córrego dentro de um capão de mato com uma larga ponte de madeira. Do outro lado, morro acima, os restos de uma casa à beira da estrada eram o que restava do cenário de uma história que passava de boca em boca entre o povo da região.
Vitalina era uma cabocla alegre e cheia de vida. Junto com o pai, um moreno alto e magro, morava em uma casinha beira chão, de pau a pique, à beira do mato.
Um belo dia apareceu por ali um boiadeiro a caminho da cidade e como já era uma hora avançada, o sol se pondo, pediu ao morador para passar a noite por ali, num pequeno paiol que havia atrás da casa.
Era um jovem bem-apessoado e muito falante que conquistou a simpatia daquelas duas pessoas simples, isoladas, sem o hábito de ver quem quer que seja.
A mocinha se encantou com aquele belo estranho, em sua inocência dos ainda incompletos dezoito anos e acabou por se apaixonar com aquele ardor que só os jovens têm, na flor da idade e assim começou um namoro cheio de promessas de futuros dourados.
O rapaz ficou por ali uns dias, oficializaram um noivado e poucos dias depois, o moço saiu dizendo que iria receber um dinheiro em Bom Jesus, como também cumprir uma empreita de gado já combinada mês atrás.
E dessa empreitada não mais retornou.
Vitalina, ao ver que os dias passavam, os meses se iam e seu querido boiadeiro não aparecia, em desespero, certo dia, vestiu-se com o velho vestido de casamento de sua finada mãe e tomou o rumo do capão de mato, embrenhando-se capoeira adentro, e nunca mais foi vista.
Uns diziam que se envenenara, outros que tinha sido devorada por alguma onça, mas o certo é que, após algum tempo, apareceu alguém na vila de Mato Grosso dizendo que vira uma assombração. Depois disso, muitos caboclos aterrorizados contavam na vila terem visto uma moça toda de branco à beira da estrada, lá no capão de mato, que vinha observar os passantes, principalmente os cavaleiros. Alguns afirmavam que ela vinha, olhava detidamente o desavisado e voltava para dentro do mato.
Desde essa época, então passaram a chamar aquele lugar de Capoeira da Noiva.


O dia amanheceu lavado pela forte chuva que se derramara durante quase toda a noite, turvando a água do córrego e derrubando as flores da paineira, na beira da cerca do curral.
O sol mal saíra quando ele acabou de ordenhar a última vaca, e vinha se equilibrando na lama escorregadia, com o balde cheio de leite a deitar espuma branca pelas bordas. Na outra mão, um par de cordas curtas de cedenho para fazer a peia.
O cavalo, preso pelo cabresto ao mourão da cerca, esperava pacientemente, adivinhando a jornada que o aguardava.
Os irmãos menores, encarapitados na tábua da cerca, com as canequinhas de leite tirado na hora, faziam bigodes brancos de espuma e observavam enquanto ele despejava o balde no latão, em cima de um carrinho com rodas de madeira, e lhes ordenava, com seu jeito autoritário, que levassem o leite para sua mãe fazer o queijo.
Mas João nesse dia estava feliz.
O tão esperado terno branco de linho cento e vinte estava pronto e o alfaiate mandara recado por um primo que passara por lá buscando uma encomenda.
É, vinte mil réis suados, mas valeria a pena. Os pensamentos já bailavam por um futuro bem próximo.
A cidade ficava a uma tirada de quatro léguas e meia, portanto ele teria de sair logo para estar de volta ao final da tarde.
Trouxe o animal para a beira da varanda da casa e, prendendo-o a um gancho pendente do pilar do canto, começou a prepará-lo para a viagem. Alisou o pelo com a raspadeira e a escova, ajeitou-lhe os baixeiros no lombo, e jogou-lhe a sela em cima.
Feito isso, entrou para tomar um banho e se arrumar, e voltou logo, ajeitando na cabeça o chapéu novo de feltro e apoiando a botina na mureta para calçar as esporas. Fez algumas recomendações aos irmãos sobre os serviços do dia, já com a mão na cabeça dos arreios, e ganhou a sela com a destreza e agilidade que demonstravam sua intimidade com a lida do campo. Obrigou na rédea e o alazão fez uma meia volta graciosa, tomando o rumo da estrada batida.
Seguia feliz, com um assobio nos lábios a aproveitar o dia de folga, olhando os campos que a semente do gordura tingia de lilás, aqui e ali, uma árvore regurgitando flores, amarelas do ipê, rosa pálido da paineira, vermelho-laranja de algum cipó de São João entrelaçado a uma copaíba, e admirava tudo isso sempre como se fosse a primeira vez. O cavalo trotava num compasso firme, deixando rastros na areia úmida da chuva da véspera, e os pensamentos viajavam na frente dos passos.
Chegou à cidade com o sol a pino, passando pelo cemitério, pois, para quem vinha dos lados da vila, a entrada da cidade era “pelos fundos”. Aliás, pelo cemitério dos pobres, pois mais para dentro da cidade havia outro que era reservado para as famílias mais abastadas, o que ele achava um desperdício de terra, além de hilariante, uma vez que o defunto não ficava mesmo sabendo em qual dos dois fora enterrado. Mas ... preconceito é preconceito, e não se discute!
Parou o cavalo em frente à loja do alfaiate e desceu para experimentar o terno, que serviu como uma luva. O paletó era jaquetão, com quatro botões em duas fileiras e gola baixa, e as calças bem largas para que o linho tivesse jogo.
O alfaiate pendurou o terno num cabide, envolvendo-o com papel pardo grosso para que ele pudesse levar no cavalo. Os vinte mil réis economizados durante meses se foram e ele, jogando seu troféu às costas, montou e partiu.
Ao passar em frente a venda ouviu que lhe chamavam. Era seu primo Diogo que lhe acenava de dentro da venda convidando-o para uma refrescante cervejinha preta.
- Apeie, João, que o sol está quente! Vamos tomar uma pretinha!
Ele tencionava ir embora sem parar em lugar nenhum, Pois queria estar em casa antes do anoitecer, mas havia tempo que não se encontrava com o primo e então parou para um dedo de prosa.
- Então, primo João, como tem passado?
- Vamos vivendo, primo, como Deus quer.
- E as namoradas?
- Ora, primo, não tenho tempo para essas coisas não!
- Pois eu acho que você devia se casar e quanto mais cedo melhor. Um homem que trabalha tanto assim tem que ter uma companheira e eu acho que sei da companheira ideal para você!
- Ora, primo Diogo, deixe disso, está parecendo Santo Antônio!
- Mas é sério, João, a moça é prima também e você, se não conhece, pelo menos já deve ter ouvido falar. Chama-se Helena e é filha da tia Umbelina e do tio Manoel. Mora com o vovô Diogo, meu xará, lá na Fortaleza.
- Eu sei quem é, primo, mas nunca a vi. Acho que só um dia, e de longe. Mas eu ainda não penso em nada sério mesmo.
- Pois vá pensando, meu rapaz, vá pensando!
- Está bem, primo, pensarei a respeito.
Pois sim, que pensava mesmo, porém era em um par de olhos cor do céu de Junho, cabelos dourados e lábios de pitanga madura que lhe sorriam lá de sua janela ao vê-lo passar pela rua principal montado no alazão de pelo brilhante, garboso como o gavião caçador.
Beppa, a italianinha, a paixão, o coração apressado, os planos de futuro, a esperança do casamento dos sonhos.
E ali, na cabeça do arreio, o terno cento e vinte, a certeza de que seria o mais elegante do baile e que dançariam pela primeira vez, e pela noite toda, sob olhares invejosos e dores de cotovelos.
- Pensarei a respeito, primo. – ele repetiu, tornando à realidade.
A conversa continuou animada e João foi ficando. Primo Diogo pediu lingüiça de porco e pão, com mais cerveja preta e acabou por convidar o primo a ir até sua casa para um lanche reforçado.
- Vamos, João, você está sem almoço! Venha comer alguma coisa melhor lá em casa.
Relutantemente ele acabou por seguir o primo Diogo. Ia puxando o cavalo pelas rédeas e conversando animadamente. Acabou por se demorar demais e já pelas cinco e tanto da tarde, preocupado, despediu-se dos parentes e picou a trilha.
O sol já começava a se por quando ele parou no riacho da cachoeira para deixar o cavalo beber. Os raios do poente se refletiam nas águas límpidas que corriam sobre as pedras escuras, dando a elas um brilho áureo que ofuscava a vista. Logo que o animal terminou de beber, com toques da espora, ele lembrou-o que era hora de romper a marcha.
A lua cheia prometia uma noite clara como o dia e ele prestava atenção nos contornos das serras distantes, enegrecidas e silenciosas, um silêncio que a tudo envolvia, quebrado apenas pelo trotar do alazão na estrada batida e um ou outro pio de ave noturna.
Na metade do caminho, com a lua já alta e a sinfonia da noite a plenos pulmões, ele divisou ao longe a Capoeira da Noiva e toda a história veio-lhe à mente com se tivesse assistido a tudo de perto. Um arrepio percorreu-lhe a espinha, ao pensar na possibilidade de ser mesmo verdade o que ouvira contar.
À medida que se aproximava do capão de mato, sua apreensão aumentava. Nunca vira nada em sua vida, mas quem sabe?
A estrada beirava o bosque por umas centenas de metros e descia, mais adiante, com árvores altas dos dois lados agora até a ponte sobre o riacho de águas calmas e profundas. Ele entrou por esse túnel de vegetação abundante com o coração apressado e as esporas prontas para ferir as costelas do alazão, obrigando-o à disparada, caso visse algo fora do comum. Passou pela ponte de madeira, os cascos do cavalo produzindo um som cavo ao baterem nas pranchas, e começou a subir, do outro lado. As árvores que tapavam a luz da lua iam, aos poucos, rareando de um dos lados da estrada. Mais uns trezentos metros e estaria livre!
Mais adiante, aos poucos, os olhos atentos a qualquer movimento nas sombras, o campo aberto próximo, as orelhas do animal denunciaram alguma coisa, apontando para a frente. Ele seguiu a linha de visão do cavalo e deparou-se com algo imensamente branco, imóvel, à beira da estrada logo adiante, o que fez o sangue gelar-lhe nas veias. À medida que se aproximava, os contornos de um corpo de mulher todo vestido de branco iam-se delineando. O cavalo bufou assustado e ficaram assim, homem e animal a tremer, com medo de dar um passo adiante. A mulher de branco não se mexia, permanecia como uma estátua à beira da estrada, sobre uma moita de capim gordura, e então ele se animou a aproximar-se para ver o que era de fato.
Com as esporas obrigou o alazão a dar alguns passos, mas ele se mantinha relutante e trêmulo, por isso apeou-se e puxou o animal pelo cabo do cabresto. Mais um pouco adiante e ele começou a distinguir o que era o seu fantasma e não pôde conter a gargalhada!
A luz da lua, atravessando por uma falha na copa das árvores, iluminava uma moita de assa-peixe que se tornava branca como neve, refletindo os raios prateados em meio à escuridão.
Mas, como o cavalo continuava a bufar, ele concluiu que devia haver algo real por ali. Um animal não se assustaria com uma planta. Observou melhor e notou algum movimento no interior da moita e acendeu um fósforo, aproximando-o e examinando o capim. Entre a folhagem do assa-peixe e o gordura entrelaçado, um par de olhos espreitava: uma pequena onça pintada. Por isso então o cavalo estava assustado; por certo farejara o perigo à distância e, como onde tem um filhote deve ter a mãe, ele montou depressa e saiu em disparada, ganhando o campo como um raio.
A noite já ia alta quando ele abriu a porteira de arame defronte à varanda de casa. O alazão suspirou, cansado da última légua a passo puxado, enquanto João sentia a mão doendo por apertar o gancho do cabide com o precioso terno cento e vinte.

- IV –

- A vaca mocha pariu! – pensou ele ao notar a falta do animal no colchete do pasto, à hora da ordenha.
O dia começava a despontar, com a tímida claridade a se insinuar pelo céu de chumbo, carregado, despejando um chuvisqueiro insistente que ensopava o capim Jaraguá, vergando-lhe as pontas carregadas de sementes.
Ele recolheu, aos escorregões, o gado para dentro do curral enlameado e preparou o balde, o latão e as cordas. Ordenhar as vacas em dia de chuva era um sacrifício; as cordas se enchiam da barro, sujando as mãos e as roupas; os animais ficam inquietos, mexendo as patas e, às vezes jogando lama dentro do balde e perdendo o leite. Porém, nesse dia, ele estava de bom humor e nada que pudesse acontecer iria carregar-lhe o cenho ou calar o assobio dos lábios. Era o dia “D”, dia do baile e a expectativa enchia-lhe a alma de leveza e felicidade, fazendo-o sonhar acordado, indiferente às dificuldades do serviço.
A vaca mocha não aparecera ainda quando ele terminou a ordenha. Apressou-se então a aviar os afazeres e selou o alazão, saindo pela porteira do pasto a campear. Passou pela copaíba, onde a cerca virava em um ângulo reto e descia em direção ao córrego, cuidando sempre em olhar primeiro na cabeceira do pasto, pois seria pouco provável que, num dia chuvoso como aquele, o animal procurasse a beira do brejo.
Havia, a uma curta distância da cerca da cabeceira, uma mangueira enorme, com sua copa arredondada a cobrir um grande círculo no meio do capim onde o chão, constantemente coberto de folhas secas, era um colchão natural. Nessa cama de folhas, abrigada dos pingos da chuva, ele encontrou a mocha a ruminar preguiçosamente enquanto uma linda bezerra malhada dava-lhe cabeçadas no úbere, querendo mamar.
Com um sorriso, ele apeou e aproximou-se, puxando o alazão pelas rédeas, para olhar mais de perto.
A vaca mocha, muito mansa e tranqüila, olhou-o pachorrentamente e, virando o pescoço, deu uma carinhosa lambida na cria, como se estivesse fazendo as apresentações.
Ali mesmo ele ajudou a bezerra na primeira mamada, certificando-se de que ela tomaria bastante colostro, e depois conduziu mãe e filha ao curral, onde havia um pequeno cercado coberto, com o chão forrado de gordura seco, onde as crias novas ficavam abrigadas da umidade e dos ventos.
O almoço estava pronto quando ele terminou de acomodar os animais, e seu estômago lhe dizia que já passava da hora de abastecê-lo. Rapidamente ele lavou as mãos e o rosto na água da bica e entrou em casa, beirando o fogão de lenha.
Após ter comido como um frade, resolveu tirar uma pestana, pois a noite prometia ser longa. O terno branco, no guarda-roupa, aguardava sua hora de entrar em ação.
Um olho de sol se apresentou à tarde, empurrando as nuvens chuvosas para o leste, como a adivinhar que o dia era especial e por isso obrigava o aguaceiro a dar uma trégua.
No calor abafado da volta do dia ele se levantou, espreguiçando-se para afastar a modorra, e saiu para preparar o cavalo que deixara no piquete, comendo milho no cocho à sombra da mangueirinha. Deixando o alazão selado e bem escovado, preso ao gancho do pilar da varanda, entrou, tomou um bom banho, aprontou-se, embrulhou o terno em um lençol e, jogando-o às costas com cuidado, saiu assobiando “Rapaziada do Brás” e tomou o caminho da vila.
Era ainda dia quando ele apeou em frente à venda do "sô" Elias e entrou para uma boa prosa. O turco, com o eterno sorriso de dente de ouro, recebeu-o puxando de baixo do balcão um garrafão empalhado e oferecendo-lhe um trago de cachaça velha.
- Hoje eu aceito "sô" Elias!
- Hoje é dia de festa, João, e a cachacinha é especial como o dia! Saiba que sou um dos festeiros da quermesse, logo mais à noite, e já mandei a mulher preparar uma leitoa assada para o leilão. Gostaria muito que você viesse à nossa mesa e se sentasse para um copo de vinho com a gente!
- Pode deixar, "sô" Elias, eu vou mesmo!
Ele bebeu de um só trago a dose de cachaça e sorriu vendo o turco servir um novo copo.
Atrás da venda havia um quintal cercado onde ele deixou o cavalo para que passasse a noite, pendurando a sela a um gancho pendente do caibro da coberta mais aos fundos. Isso feito ele retornou à venda, passou ali mais uma hora de conversa animada com o vendeiro e mais alguns fregueses habituais que tomavam seus tragos antes de ir para casa, rodear as panelas.
À hora do jantar, ele consultou o relógio de bolso, despediu-se dos companheiros, jogou seu terno às costas e saiu, tomando o rumo da praça. Já era quase noite e as ruas estavam desertas. No silêncio, seu passos eram marcados pelo retinir das esporas e pela batida dos saltos das botinas no cascalho, num ritmo firme com o qual ele ganhou o largo da Matriz, contornando o caramanchão e a coberta de sapé armada no adro da igreja, onde se realizaria a quermesse. Além da cruz de aroeira, cortou a praça na diagonal e seguiu para o casarão da esquina, onde o tio Honório o recebeu na varanda, acima de um lance de escada de mármore, e entrou com ele a conversar animado.
Cumprimentou tia Amazília e sentaram-se os três à mesa grande da cozinha, onde ele deixou-se ficar um tempo a dar notícias da família e a tagarelar coisas sem importância para matar as horas.
À hora do jantar, recusou o convite dos parentes dizendo que iria comer na quermesse, pediu licença para trocar-se em um dos quartos e voltou logo, já preparado para a noite.
- Boa noite, tio Honório, tia Amazília. Pretendo ir ao baile e de lá mesmo vou para casa.
- Não quer dormir aqui, João? Há muitos quartos sobrando!
- Obrigado, tia, mas o baile termina tarde e amanhã cedo tenho de tirar o leite. Outro dia, talvez.
- Está bem, João. Deus o abençoe e divirta-se!
- Dê lembranças ao concunhado Alfredo e às crianças.
A rua já estava movimentada e ele deu algumas voltas pela praça, apreciando o movimento, as mocinhas e os rapazes que desfilavam, exibindo-se e flertando entre sorrisos ruborizados, os casais que conversavam nos bancos em volta do coreto. Com um sorriso ele observava a tudo, mas com o pensamento voltado para os acontecimentos que estavam por vir.
De longe o burburinho da quermesse se fazia ouvir, com risos dos que se divertiam, gritos roucos do leiloeiro misturados ao som de um pequeno grupo de músicos onde o sax alto se destacava, choroso, a soprar uma valsinha alegre. A festa estava animada e ele se dirigiu para a barraca encontrando logo seu amigo, o turco, que se acomodara a uma das mesas com a família, a tomar vinho e saborear uma leitoa assada. Mal o viu, o turco arredou um dos moleques de sua cadeira para dar lugar ao amigo, enquanto gritava ao rapaz que fazia as vezes de garçom, para que trouxesse mais um copo.
- Viva, amigo João! – disse o turco com um largo sorriso – Resolveu então dar-nos o prazer de sua companhia?
Cumprimentando o amigo e sua família, ele sentou-se, enquanto lhe eram servidos um copo de vinho e um naco de leitoa assada que ele, sem mais preâmbulos e com uma visível intimidade para com os outros comensais, atacou com unhas e dentes, literalmente, enquanto o turco e a esposa conversavam, entre risos divertidos, a lhe provocar com observações graciosas sobre seu traje especial e com insinuações a respeito das mocinhas que fatalmente iriam suspirar quando o vissem. Ele participava das brincadeiras com transparente bom humor e, entre risos, pedaços de assado e tragos de vinho, as horas iam passando no grande relógio da igreja sem que ninguém se apercebesse.
- "Sô" João, espero que me desculpe a curiosidade, - disse Dona Sarah, esposa de Elias, logo que os risos fizeram uma pausa – mas um passarinho me contou que o senhor vai hoje ao baile para se encontrar com uma pessoa muito especial! Será quem estou pensando?
- Ora, Dona Sarah, nem tanto! Apenas um namorico inconseqüente de gente jovem e sem juízo! Quero mais apreciar a dança.
A mulher não se mostrou muito convencida, mas aquietou-se, participando do jogo e sabendo agora que seu passarinho estava certo. O assunto tomou outros rumos e, algumas garrafas de vinho depois, se fez hora de retirar-se. O casal recusou polidamente o convite para que o acompanhasse ao baile, pretextando não ter com quem deixar as crianças. Ele pediu licença e levantou-se, acenando para o rapaz que servia as mesas, ao que o amigo exclamou:
- Nada disso! Você é meu convidado, a despesa é por minha conta!
Ele agradeceu ao amigo e, despedindo-se, saiu, acompanhando a melodia do saxofone.
Caminhava tranqüilo, atravessando a praça, com o som da quermesse ainda nos ouvidos. O vinho o deixara num estado leve de embriaguez ele sentia-se caminhar nas nuvens, com uma brisa leve a soprar-lhe no rosto.
No salão, o baile já começara e os casais dançavam ao som de uma orquestra que viera da cidade grande, trazendo, no grupo, um cantor famoso que iria se apresentar no decorrer da festa.
O prédio onde se realizavam os bailes era uma construção imponente, bem no meio do quarteirão, a maior da vila. Tinha-se acesso por um enorme portal em arco que se abria para uma ante-sala, onde ficava a bilheteria, perto da porta aberta, e alguns sofás e cadeiras à volta de uma mesa de centro que amparava um grande vaso de flores num arranjo artístico. Atravessando-se a ante-sala, outro portal em forma de arco precedia duas escadas laterais que terminavam num grande patamar assoalhado cercado de corrimãos de madeira torneados, onde inúmeras mesas circulares, com quatro cadeiras cada uma, e um extenso bar formavam um ponto de encontro e de descanso entre uma e outra dança. Mais adiante, outras duas escadas, rentes às paredes dos dois lados, desciam para o salão de baile, com um palco e camarins ao fundo.
Entrando por uma das escadas que iam dar no patamar já lotado, ele dirigiu-se ao bar e, assentando-se em um dos altos tamboretes junto ao balcão, pediu uma taça de licor. Ajeitou a gravata e, com a taça em uma das mãos e o chapéu na outra, seguiu até à balaustrada de madeira torneada que separava as mesas do salão alguns metros abaixo e à frente do patamar onde estava. Do alto, ele contemplou os vários pares que rodopiavam ao som da valsa alegre que a orquestra executava naquele momento. Procurou a italianinha entre os pares de dançarinos, uma vez que não a havia visto entre as pessoas que estavam às mesas.
O baile estava mais animado do que se esperava. Talvez pelo fato incomum de haver uma grande orquestra tocando e também pela fama do cantor que se apresentaria, havia muita gente da cidade vizinha que comparecera à festa.
Apoiado no topo do corrimão, no alto da escada, ele cumprimentava vários conhecidos que passavam, indo e voltando do salão, quando sentiu que lhe batiam nas costas. Voltando-se viu o primo Diogo que o saudava com o habitual sorriso despreocupado.
- Ola, primo, como vai essa força?
- Primo Diogo, o que faz por aqui? A cidade estava enfadonha?
- Às vezes é preciso mudar de ares, visitar os parentes. Estive em casa do vô Diogo, lá na Fortaleza.
- Pois é, como está o coronel? Não vejo o tio há muito tempo!
- Está bem, mas ... muito melhor está a prima Helena! Ela tornou-se uma das moças mais lindas que eu já vi! E não sei por que, João, alguma coisa me diz que vocês dois se darão muito bem!
Ele permaneceu calado por alguns instantes, sem saber o que dizer ao primo.
E nesse instante foi que a viu; a sua italianinha.
Estava linda, num vestido de veludo vermelho com rendas brancas no decote e na barra da saia, preso à cintura por um cinto preto de fivela dourada. O rosado das faces e o largo sorriso realçavam seu olhos brilhantes e azuis.
Ela dançava, leve como uma pluma. Seu par era um rapaz desconhecido, vestindo um aristocrático fraque, e conversavam sem parar, entre risos de felicidade, parecendo nem notar as demais pessoas no salão.
Nunca em sua vida ele havia visto alguém de fraque, a não ser em fotografias, e isso o fez sentir-se quase ridículo em seu terno branco de linho. Escureceram-se-lhe as vistas, como se um raio o atingisse. As pernas fraquejaram, a taça e o chapéu caíram-lhe das mãos e ele agarrou-se com força ao corrimão para não cair também. A cabeça girava, o som da orquestra, como um turbilhão, misturou-se, em seus ouvidos, com o som de vozes distantes.
- O que foi, primo João? – o primo Diogo o segurava firme pelo braço, preocupado com sua palidez.
Ele pareceu voltar a si, firmando-se nas pernas.
- Nada! Nada, primo; só preciso de um pouco de ar! Tomei muito vinho na quermesse e creio que estou embriagado!
- Vou com você até lá fora, primo. – disse o primo Diogo, abaixando-se para pegar-lhe o chapéu e amparando-o na direção das escadas de saída.
Uma vez na rua, a brisa fresca da noite o reanimou um pouco. Ele afrouxou a gravata e o colarinho, assegurando ao preocupado que já estava bem e que iria para casa.
- Vá divertir-se no baile, primo. Já estou bem e vou para a casa da tia Amazília dormir um pouco. Deve ser cansaço. Vá! ... Vá! – ele disse, batendo amigavelmente nas costas do primo e empurrando-o de vota ao salão, enquanto tomava a direção da praça.
Mal o companheiro transpôs o arco da porta, ele virou-se e caminhou depressa para o lado da venda onde deixara o cavalo. Um soluço profundo brotou-lhe no peito ferido e seus pensamentos eram uma estonteante confusão de imagens, enquanto os passos incertos pelo cascalho da rua pareciam carregar o corpo com dificuldade.
Respirando ofegante, chegou á venda, dando a volta e dirigindo-se ao cercado dos fundos onde o fiel alazão o esperava silencioso, na escuridão das sombras do quintal cercado de muros de pedra. Encilhou o cavalo, montou e saiu para a rua, de lá tomando a direção da estrada e soltando o alazão a galope.
O cavalo, ágil e forte, rompeu em velocidade pela estrada batida, morro acima e ele deixava por conta do animal o rumo a tomar. O chapéu foi arrancado pelo vento, o que ele nem notou, apertado por uma ansiedade que lhe oprimia o peito e turvava a visão. Em uma espécie de delírio, as cenas recentes lhe vinham à mente, os acontecimentos que desencadearam toda essa confusão dolorosa. O vestido vermelho rodopiava em seus pensamentos como se ainda estivesse dentro do salão, e uma dor fria e cortante, como o aço de uma faca, dilacerava-lhe as entranhas.
Finalmente o alazão venceu a subida do morro e, ao passar pelo cruzeiro da fazenda Liberdade, ele sentiu a dor aliviar-se um pouco. Respirou fundo e conteve o animal pelas rédeas, diminuindo a velocidade e aproximando-se da cruz que ficava a algumas dezenas de metros de uma porteira por onde ele deveria passar para prosseguir no caminho para o sítio.
Aos pés da grande cruz de aroeira, ele se deixou ficar contemplando a grande peça escura desenhada contra a luz do luar. Apeou-se para deixar o cavalo normalizar a respiração ofegante pelo esforço da subida em disparada, enquanto murmurava algumas frases sem nexo, á guisa de oração, pedindo pelo alivio de que tanto necessitava. As lágrima brotavam aquecendo-lhe as faces resfriadas pelo vento e, pouco a pouco, aquela sensação de embriaguez e delírio foi abandonando o coração angustiado. Os pensamentos se desanuviaram e, enxugando a água que escorrera pelo rosto, ele montou de novo, atravessou a porteira e seguiu para casa a passo moderado.
Em casa, finalmente, ele caminhou a passos trôpegos para o quarto, atirando-se à cama sem ao menos se despir ou tirar os sapatos. Abraçou-se ao travesseiro e soluçou, com a alma em frangalhos.
- Nunca mais, italianinha! Nunca mais!


- V –

Era véspera de Natal.
O dia amanhecera ensolarado, apesar da época das chuvas, e a vila estava agitada com o movimento de muitas pessoas que iam e vinham na rua do comércio, congestionada por cavaleiros, carroças de todos os tamanhos, carros de bois, numa mistura alegre de clima de festa contagiante.
Durante o ano todo, os trabalhadores das fazendas vinham à vila para fazer suas compras, no dia de pagamento. Alguns poucos possuíam um cavalo magro para fazer a força, seja no lombo ou puxando uma rara carrocinha, mas a maioria deixava suas compras no carroção ou carro de boi da fazenda e ficava o resto do dia perambulando pelas ruas, encontrando amigos, tomando um trago em qualquer venda ou bar ou simplesmente sentando-se à sombra do caramanchão e fazendo as vontades simples das mulheres e das crianças.
Não era raro, no entanto, ver-se pelas estradas poeirentas algum caminhante vergado ao peso do saco branco de despesa e cambaleando sob o efeito da cachacinha.
Mas era véspera de Natal e, fosse pelo que fosse, esses homens simples, de mãos calejadas e almas infantis, viam no dia de folga a oportunidade para esquecerem-se do cabo da enxada e aproveitarem, sorridentes, de tudo o que a vila tinha a oferecer. Traziam a família e todos se entregavam à gostosa tarefa de passar dia folgando sem nenhuma preocupação, embalados pelo clima de festa.
As mulheres tomavam refrescos, tagarelando ou examinando as mercadorias das lojas, enquanto as mocinhas e os rapazes davam voltas pela praça, namorando, trocando tímidos olhares, mandando recadinhos. Os moleques eram levados à força para o barbeiro, embirrados, e depois ganhavam doces e saíam a correr pela praça feito rebanho estourado. Os homens deixavam-se ficar nas vendas conversando, negociando e barganhando desde ferramentas até magros pangarés para serviço, encorajados pelos tragos de cachaça, e alguns se davam ao luxo de tomar um porre e zanzar pelas ruas às gargalhadas com os companheiros.
João Cassiano, um negro forte e esperto, de fala fanhosa e baixa, e olhar firme, estava na venda do turco com alguns companheiros. Haviam tomado a cachacinha e resolveram refrescar-se com cerveja esfriada à sombra dentro de sacos de estopa recheados de palha. Conversavam despreocupados, as compras já devidamente encarretadas.
- Eu lhe digo, "sô" Messias! Quando vim de Minas, com o finado pai, era ainda moleque novo, sem tino, mas a Mariana, minha irmã, que já era moça nessa época, conta muitas passagens que ouviu de antigos moradores daquele fundão onde era nossa casa. Ela mesma já andou vendo qualquer coisa!
O interlocutor ouvia com atenção, cismando, entre crendo e descrendo. Era um mulato alto e magro, já de mais idade, com um vasto bigode encimando os lábios e que falava trocando olhares com os bicos das botinas. Os janeiros lhe conferiam mais prudência e discernimento, e ele falava devagar, com cuidado, num assunto assim polêmico.
- Cassiano, meu amigo, eu sou um homem já vivido e tenho andado muito por aí, muitas vezes fora de hora, mas comigo nunca aconteceu nada.
- Sorte sua, "sô" Messias, sorte sua! O finado meu pai, que era homem de falar muito pouco, uma vez contou de um entrevero que teve com uma coisa, que ele dizia ser meio gente, meio bicho, na passagem de uma porteira perto de um engenho velho. Ele teve uma fadiga dos diabos para conseguir se safar. Quando conseguiu, deitou uma carreira desabalada e chegou em casa com a roupa em tiras, todo arranhado e com o coração nas mãos!
João Cassiano também, como disse de se pai, era negro de poucas palavras, mas o dia de folga, os amigos que não encontrava sempre, e a bebida, haviam contribuído para que ele ficasse mais solto, mais falante. Lembrava-se das histórias que ouvira dos pais e as contava com satisfação, vendo que prendia a atenção dos companheiros. Entre uma e outra tragada do cigarro de palha, as palavras brotavam e a conversa engolia o tempo.
Enquanto isso, não muito longe dali, outra história se desenrolava!
Beppa ajudava a mãe a preparar os assados para a ceia de Natal e, a cada tropel de cavalo que ouvia na rua, corria à janela com o coração aos saltos, alimentando ainda a esperança de ver o cavalo alazão que ela tão bem conhecia, levando o amado cavaleiro. A aflição apertava-lhe a alma e ela desejava uma oportunidade para esclarecer com o namorado a brincadeira infantil e inconseqüente, no dia daquele malfadado baile.
Mais de três meses se tinham passado desde então, e João sumira sem dar notícias.
A pobre menina não sabia quão profunda foi a mágoa que aquela brincadeira inocente provocou naquele valente rapaz, nem tampouco que essa mágoa o transformaria numa fera ferida que ataca com ódio até a própria sombra, defendendo-se de tudo e de todos. A dor despertou o animal selvagem que existia naquela alma livre e indomável, qual o gavião vermelho a voar pelos campos, e ele defendeu-se buscando o isolamento, a remoer os sentimentos até que a ferida cicatrizasse.
Depois, então, ele mudou. Passou a freqüentar as prostitutas da cidade e suas horas de folga eram gastas na casa da zona, a pagar por alguns momentos de amor fingido, sem pesar as conseqüências. E foi assim que pegou uma doença venérea que o deixou fora de circulação por uns bons tempos, a se tratar com seu primo, Dr. Antônio, tomando incontáveis injeções de bismuto que não conseguiam debelar a infecção, e fazendo raspagens e curativos locais por demais dolorosos.
Mas essa esfrega não foi o bastante. Ele deixou as prostitutas e voltou-se para as mocinhas mais humildes, que acreditavam em falsas promessas, e até pensavam em poder prender o bom partido. Não sabiam elas que ele se vingava. Vingava-se pelas dores passadas, vingava-se de Beppa, a italianinha, iludindo qualquer uma que cruzasse seu caminho, alimentando um ódio que o corroia por dentro sem que ele mesmo desse conta.
Naquela véspera de Natal ele foi à vila, porém tomando a precaução de entrar pelo outro lado, pela linha da estrada de ferro como sempre fazia desde o dia fatídico. A poucas quadras da estação, uma irmã sua, a Mena que era a mais velha e havia se casado há algum tempo, possuía uma casa grande onde ele agora se hospedava em suas visitas à vila. O cunhado era um parente distante, dono da fazenda Barro Preto, e os dois se davam muito bem.
Ao bater à porta, sua irmã atendeu com uma expressão alegre e disse para que entrasse logo, pois lá estava alguém que viera à sua procura e aproveitara a ocasião para fazer uma visita à prima que não via há bastante tempo.
O visitante era nada menos que o primo Diogo, que viera passar as festas em casa do coronel seu avô, de que havia herdado o nome.
- Olá, primo João! Estávamos mesmo falando de você.
- Como está, primo Diogo?
- Levando a vida! ... Mas eu estou aqui com a incumbência de convidá-lo para o almoço de Natal em casa do vovô. Eu disse a ele que você iria, o que o deixou muito contente, pois andava dizendo que não lhe punha os olhos em cima desde há muito tempo e queria vê-lo.
- Mas eu não sei se poderei, primo!
- Ora, ora, primo, não faça essa desfeita1 Também há uma certa pessoa que o espera com mais ansiedade ainda, a quem eu tomei a liberdade de falar a seu respeito e agora espera conhecê-lo. É a prima Helena, como você já sabe, a morena mais bonita que essas terras já viram, capaz de montar um cavalo com a mesma graça com que dança uma valsa num baile de gala.
João ficou calado. Não esperava por aquilo e fitava o primo com espanto e uma interrogação muda. O silêncio começou a ficar constrangedor e então ele se decidiu, uma decisão que pareceu vir do mais profundo de seus pensamentos.
- Está bem, primo, eu irei. Você me deixa mordido pela curiosidade! Além do mais também quero ver meu tio-avô. Pode dizer a todos que amanhã estarei por lá, logo cedo.
Estavam ainda conversando sobre o dia seguinte quando a tranqüila dona da casa apareceu à porta da sala e os chamou para o café.
Os dois primos interromperam o bate-papo e, comentando o cheiro do café fresco e das roscas, dirigiram-se à mesa.


Na fazenda Fortaleza, aquela véspera de Natal foi um dia que amanheceu incomum. Pela madrugada já se ouviam os gritos dos porcos que foram escolhidos para o abate. Dois fortes caboclos e mais o capataz do coronel, haviam carregado para a ceva uma montanha de palha de milho, a fim de sapecar os gordos capados antes de lhes tirarem as vísceras, e agora os estavam tangendo para fora do cercado, com uma corda ao pé de cada um que os impedia de fugir e facilitava para conduzi-los até a calçada de pedras previamente lavada. Três porcos grandes, com a gordura a balançar a cada passo, foram conduzidos à calçada a berrar a plenos pulmões, e só pararam quando a vida se esvaiu nas pontas afiadas das facas dos caboclos.
No curral, um grande garrote, assustado por estar só e preso, bufava e ameaçava com os chifres a qualquer um que passasse por perto, pelo lado de fora da cerca enquanto esperava, pressentindo o fim próximo.
O coronel dera ordem para que se distribuísse carne para todos os empregados.
As cozinheiras, ajudadas por outras recrutadas na véspera, preparavam tachos, bacias de alumínio, fôrmas e assadeiras, máquinas de moer à manivela, em cima de uma grande mesa feita de uma só prancha de ipê que ficava sob uma coberta, junto de uma fornalha e de um forno a lenha. Não tardariam a serem estendidas sobre a imensa mesa as seis bandas de capados, enquanto os quartos de boi seriam dependurados em ganchos de ferro que pendiam da viga mestra do telhado.
O serviço de trinchar as carnes, moer o toucinho para fazer a banha nos tachos, salgar e assar as peles para as pururucas, temperar as carnes para o almoço do dia seguinte, ficava por conta das mulheres comandadas por uma afoita Mariana que não parava um minuto sequer.
Helena também se levantou cedo e juntou-se às mulheres nos preparativos do almoço de Natal, numa disposição rara provocada pela inexplicável onda de felicidade que se infiltrou em seu espírito com a chegada das festas. Parecia que os passarinhos cantavam com mais vigor as suas mais afinadas melodias; seus olhos viam os campos mais verdes, as flores mais coloridas.
Toda essa felicidade tinha um motivo de que ela própria não se dava conta: primo Diogo havia lhe falado de João muitas vezes e prometera convidá-lo para o dia de Natal. Ela se entusiasmara desde a primeira vez em que o primo lhe descrevera o rapaz que, em sua opinião, tinha sido feito sob medida para ela, embora se fizesse de desinteressada sempre que esse assunto vinha à baila.
O coronel já estava à mesa do café quando ela chegou à cozinha, ocupadíssimo com um broa de fubá que lhe enchia as barbas de farelo. Sorriu ao ver a aparência radiante da neta.
- A sua bênção, vovô!
- Deus a abençoe, Helena! Você está mais bela e feliz nesta manhã! O que foi, viu passarinho verde?
- Oh, vovô, creio que deve ser a expectativa da festança de amanhã!
Ela serviu-se de uma xícara de café quente, sentando-se à mesa perto do avô sem parar de conversar. Recusou o convite do velho quando, terminado o café, ele a convidou para um passeio a cavalo.
- Desculpe, vovô! Mariana e as outras devem estar muito atarefadas e eu quero ajudar um pouco para ver também se tudo está saindo direito.
O velho coronel afagou-lhe a cabeça com carinho. Não deixaria nunca de admirar aquela doce criatura por quem tinha um sentimento todo especial. Levantou-se com um sorriso largo e, pegando o chapéu, saiu, deixando-a só com seus pensamentos.


O cavalo trotava pela estrada batida ao por do sol. Os campos à volta, agradecendo a bênção das chuvas de verão, se vestiam de um verde cheio de vida que cobria tudo onde a vista alcançava; porém seus olhos, que pareciam fitar os verdes horizontes, estavam a observar o interior, a alma perdida em tristonhos pensamentos.
Sua mãe estava fraca e adoentada e o pai resolver vender o sítio e mudar-se para a vila, o que liquidava com seus sonhos de subir na vida. Um grande sentimento de solidão sufocava-lhe o peito; a terra era parte integrante de toda sua vida. A ela estava ligado por um cordão umbilical que jamais se romperia. Afastá-lo de tudo o que ela representava, condenando-o à insipidez dos desocupados da vila a tagarelar e se meter nas vidas alheias, era matá-lo aos poucos, asfixiá-lo como a um peixe tirado do ribeirão, um pássaro a que se cortassem as asas, interrompendo o vôo da liberdade.
O alazão continuava pela estrada a trotar num compasso binário, o som dos cascos a embalar os devaneios do cavaleiro preocupado.
O homem, compreendendo que sua luta será solitária, que não poderá contar com nenhuma ajuda, busca na angústia a força para empreender a caminhada, como o guerreiro que, ao ver ameaçada sua bandeira de liberdade, seus sonhos e crenças, se enche de força e coragem redobradas e se lança à luta, tornando-se invencível.
Sem saber ao certo o que faria, ele decidiu-se a batalhar sem tréguas para impedir seus sonhos de rolarem por terra. Amanhã seria dia de Natal e ele iria almoçar com o coronel, seu tio-avô. Talvez tivesse a oportunidade de propor alguma coisa ao velho.
- Amanhã pensarei melhor – murmurou em voz alta quando o alazão se aproximava da porteira.
Porém, as preocupações não o abandonaram, atormentando-o, tirando-lhe o apetite. A mãe, também preocupada com aquele amuo, perguntava-lhe a razão de tanto cismar, ao que ele dizia não ser nada, ou apenas dava meias respostas.
Foi se deitar.
A noite arrastava-se com preguiça, trazendo-lhe aos ouvido despertos, o pio da coruja na copaíba seca, e a orquestra dos sapos e grilos enchendo a escuridão com acordes contínuos. A cama parecia-lhe uma frigideira no fogo a cozinhar-lhe as costelas. Com as roupas e os lençóis encharcados ele virava-se e se revirava num frenesi angustiado, com a cabeça a latejar, tentando em vão conciliar o sono. Levantou-se, tomou água, deitou-se de novo para, em seguida, levantar-se outra vez. Fumou na varanda a interrogar as estrelas e só quando a madrugada já ia alta conseguiu passar por uma madorna, despertando logo no primeiro cantar do galo.
O dia prometia ser ensolarado nesse começo de verão. O sol já mostrava sua face incandescente, trazendo brilho de cristais aos pingos de orvalho nos arbustos e na grama do pasto quando ele se dirigiu, num passo cansado, à bica da horta para lavar-se na água fresca e cristalina da nascente. Algumas roupas estendidas sobre moitas de erva-cidreira observavam o pequeno rego d'água que descia preguiçoso rumo ao córrego, lá embaixo.
Ele estava se sentindo como numa ressaca após uma noite toda de bebedeira. A cabeça girava, sentia náuseas. Afogou os pensamentos embaixo da bica de bambu gigante que cuspia um canudo prateado e frio, ensopando os cabelos compridos, o que aos poucos, lhe trouxe alívio, relaxando a pressão e o zumbido nos ouvidos.
Tomado de um novo ânimo, foi para o curral preparar o cavalo.


Na fazenda Fortaleza, aquela noite fora de festa.
O coronel estava contente por receber os parentes que resolveram fazer-lhe companhia na ceia de Natal.
"Sô" Manoel Ozório veio de Guairá, trazendo os filhos para verem o avô; o Américo, outro genro do coronel, num de seus raros momentos de pazes com o sogro, levou os meninos e a mulher; o primo Diogo, figura que não podia faltar por ser o neto mais alegre e a alma de toda festa com suas anedotas e histórias bem humoradas a respeito da família toda.
A alegria contagiou a todo mundo. A mesa era farta, com pratos de leitoa assada, lombos de porco recheados, frangos caipiras preparados ao leite, farofas, molhos, pães e bolos salgados, arroz de forno, tudo regado a muito vinho e com sobremesas variadas.
O coronel, entusiasmado e com o embalo de alguns copos de vinho, esqueceu-se da sisudez costumeira e se pôs a brincar e dizer gracejos como se a juventude passada lhe voltasse. Os olhos brilhavam, refletindo o estado de felicidade em que se encontrava.
Primo Diogo conversava em voz baixa com Helena na outra extremidade da mesa, dando-lhe notícias do tão esperado João, que deveria aparecer por lá no dia seguinte. Protegidos de ouvidos indiscretos pelo tamanho da mesa e o ruído dos festejos, o primo segredou-lhe que percebera um interesse incomum na atitude do rapaz, que ele lhe assegurara estar presente no almoço de Natal, no casarão.
Os risos e histórias prolongaram-se até quase a madrugada, quando os convivas começaram a retirar-se, aos bocejos, para seus quartos.
Primo Diogo ficou só, por fim, de amores com uma jarra de vinho a embalar-lhe os pensamentos. João e Helena formavam, em sua opinião, um par perfeito e ele se sentia bem no papel de cupido, de Santo Antônio casamenteiro. Tinha um carinho especial por Helena e gostava muito do primo. Havia de colaborar para que os dois se conhecessem e se apaixonassem.
Perdido nessas idéias, a conversar com ninguém, uma jarra de vinho se foi, ao que ele passou para a segunda, dirigindo-se à varanda com passos já não muito firmes. Ali ficou, sentado em uma cadeira de balanço, a resmungar e a cantarolar baixinho até que notou algo de estranho no céu: as estrelas giravam como um carrossel e a lua estava fora de foco. Quis levantar-se, porém parecia pregado à cadeira. Tentou uma, duas vezes e a cadeira caprichosamente balançava-se, fazendo-o perder o equilíbrio e ser atraído para o assento como um imã. Após algumas tentativas frustradas, entretanto, num esforço supremo, arrancou-se com todas as forças, indo agarrar-se ao esteio da varanda, chutando a jarra vazia que se fez em cacos contra a parede, quebrando o silêncio da noite.
Abraçado ao esteio, ele respirou fundo enquanto aguçava os ouvidos para saber se tinha despertado alguém e após alguns minutos, constatando que a costa estava livre passou então para o segundo ato: a caminhada para o quarto!
Encostado à moldura da porta da varanda, ele marcou a trajetória em direção à escada. Era muito longe para uma caminhada sem apoio, com o risco de tropeçar e quebrar alguma coisa. Concluiu que seria melhor e mais seguro caminhar de quatro e, assim de gatinhas, percorreu a distância da porta ao pé da escada. Daí por diante, com o corrimão oferecendo grande sustentação, foi relativamente fácil galgar ao topo da escada, para outra vez seguir de quatro até o quarto.
Na escuridão, ainda bateu com a cabeça no criado-mudo antes de atirar-se á cama onde amanheceu de roupas e botinas.
O barulho das panelas arrancou-o do sono, logo pela manhã, como marteladas na cabeça. A claridade do dia infiltrava-se pelas frestas da janela, ferindo-lhe a visão. Levantou-se com um tremendo esforço e dirigiu-se á bacia de louça, em cima de uma cômoda com espelho, para lavar-se. Ao empunhar o jarro de água, viu sua imagem refletida e levou um susto.
- Meu bom Deus! O que vejo é realmente um ser vivo?
Abriu uma folha da janela para iluminar melhor o ambiente.
Suas roupas estavam amarrotadas, o pescoço lhe doía pelo colarinho apertado, o cérebro parecia-lhe solto dentro do crânio e o estômago se recusava a funcionar, dando-lhe uma sensação de peso e náuseas.
Apressou-se em mudar de roupas, lavar-se e descer para a cozinha em busca de algo que aliviasse aquela horrível ressaca de vinho.
Helena, que estava ás voltas com a preparação do almoço, recebeu-o com um sorriso matreiro, olhando divertida para o estado do primo.
- Então, primo Diogo, dormiu bem?
- Tão bem como se tivesse dormido em cima de uma árvore. O corpo me dói como se tivesse levado uma surra de cabo de enxada. Tens aí, prima, alguma coisa que me cure a má digestão? Sinto um peso enorme no estômago!
Helena tomou de um copo d'água onde mergulhou um pedaço de raiz de calunga, amarga como fel que estendeu ao ressacado sem poder conter o riso.
- Sabe, primo, dizem que carne de porco e vinho ao café da manhã são extremamente saudáveis.
Pelo amor de Deus Todo Poderoso, prima! Estou a morrer! O melhor dos doces agora, para mim, teria gosto de poleiro de papagaio.
Ela ria-se divertida quando um moleque, filho de uma das cozinheiras chegou anunciando:
- Vem vindo aí um cavaleiro!
Os cães latiam, correndo para a porteira em frente à casa e todos, despertos de seus afazeres se dirigiam à varanda.
Além do grande jardim, o cavaleiro abria a porteira que rangia nas dobradiças, e o alazão, com movimentos graciosos, ajudava, empurrando a tábua e girando do outro lado.
Primo Diogo adiantou-se a chamar pelo empregado dos currais e foi, com um grande sorriso, receber o visitante. Sorria, apesar de ter a cabeça a latejar ao sol
- Então, primo João, como está?
- Anda-se, primo. Como passou? Como foi a ceia?
- Muito boa, primo! Estou ainda a sentir-lhe os efeitos! – disse fazendo uma careta. – Mas desmonte e acabe de chegar!
Ele apeou, deixando as rédeas nas mãos do cocheiro que viera a correr e, dando um abraço no primo, seguiu a seu lado para a varanda onde o coronel se postara à frente de todos com os polegares nos bolsos do colete, sisudo e altivo.
Por trás do pequeno grupo que se reunia no alto da escada, no arco da grande porta de duas folhas, Helena observava o recém chegado com o coração a bater mais depressa, ansiosa, com formigas de curiosidade. Viu-o descer do animal, aos risos com o primo, e admirou aquele jeito quase arrogante, transpirando força e juventude, um ar de quem estava a conquistar o mundo.
Ele aproximou-se decidido e galgou os degraus de pedra para a ampla varanda que circundava todo o sobrado, tirando o chapéu e estendendo a mão ao velho coronel.
- A sua bênção, tio Diogo, como tem passado?
- Que Deus o abençoe, sobrinho! Há quanto tempo não temos o prazer de sua visita! Vamos, entre que o sol está a queimar!
Helena passou a mão pelos cabelos, num gesto involuntário para arrumar-se, perturbada com a proximidade do rapaz. Aproveitou que todos se atinham aos rapapés costumeiros e saiu sem ser notada, dirigindo-se com pressa a seu quarto. Deu a Mariana o avental que usava, dizendo que chamasse o primo Diogo.
No quarto, sentou-se à frente do espelho, avaliando a imagem refletida por alguns minutos. Tirou da gaveta do toucador o pente e a escova e pôs mãos à obra. Prendeu os cabelos numa graciosa trança que deixou cair sobre o colo, o que lhe dava um ar de menina, contrastando com o vestido sóbrio de gola alta e rendada da qual pendia um camafeu seguro por um alfinete de ouro.
Bateram à porta do quarto quando ela terminava de se arrumar. Primo Diogo recebera o recado e, prestimoso como sempre, atendia ao chamado da prima.
- Primo, - disse ela, com um jeito preocupado – quero ser apresentada a ele longe de olhares inquisitivos. Chame-o à varanda, onde estarei esperando.
- Está bem, prima. Darei um jeito.
Assim dizendo, retornou à companhia dos demais, disfarçadamente se aproximando de João que trocava idéias com o Américo. Precisava de um pretexto para tirá-lo dali, mas o que lhe veio à cabeça foi somente convidá-lo a sair um pouco. Bateu amigavelmente nas costas do primo, dirigindo-se a todos da roda.
- Senhores, espero que me perdoem por roubar-lhes o interlocutor por alguns minutos, mas preciso da opinião do primo sobre um potro que acabo de ganhar de presente e está lá no curral. È necessário que seja agora, antes que o cocheiro o solte para o pasto.
O tenente concordou sem dar muita importância ao fato e os dois saíram em direção à porta dos fundos. Uma vez no terreiro, Diogo explicou o motivo daquela retirada estratégica.
- Eu precisava de um pretexto para tirá-lo de lá, primo. Helena quer conhecê-lo, mas a sós, longe desta multidão. Vamos dar a volta e entrar pelo jardim; ela está na varanda.
Os dois rodearam a casa, passaram pelo jardim e subiram a escada da frente.
Helena levantou-se da cadeira de balanço onde estivera a esperar por eles, meio desajeitada, sem saber o que fazer com as mãos, e aproximou-se.
Diogo tomou a iniciativa.
- João, esta é a prima Helena de quem já lhe falei tantas vezes. Ela já lhe conhece muito, de tanto me ouvir dizer elogios, bem merecidos na verdade, à sua pessoa. Espero de todo coração que vocês se dêem bem.
João ficou encantado. Viu naquela jovem a beleza pura e selvagem de uma orquídea desabrochada na capoeira. Simples, encantadora em sua simplicidade, mas com uma postura que dizia nada haver nela de frágil. Seu olhar contava-lhe uma infinita força interior em um invólucro cheio de graça e beleza.
Os dois trocaram um aperto de mão tímido, sem saber o que dizer. Apenas os olhares trocavam confidências.
O primo afastara-se sem ser percebido, indo para a outra extremidade da varanda de onde observava o jovem casal que, por certo, tinha muitas coisas a dizer nesse primeiro encontro.
- Eis aí o par perfeito! – dizia ele com seus botões. – Jovens, bonitos, cheios de vida e espírito de luta! Creio que nada nesse mundo poderá detê-los.


A mesa posta para o almoço era uma réplica do dia anterior. Como na ceia, espalhavam-se as carnes diversas, temperos, saladas, mandioca, arroz, feijão com toucinho de porco defumado, tudo regado a bons vinhos do Porto de todos os tipos e sucos de diversas frutas do variado pomar da fazenda.
À cabeceira da grande mesa, o coronel olhava seus convidados com um sorriso de satisfação. Ele sabia do respeito e admiração que lhe devotavam e gostava disso, orgulhava-se em ser o patriarca rodeado pela família.
Mariana servia a mesa, começando pelos homens, na cabeceira. As conversas eram amenas, ocupados que estavam todos a degustar tal variedade de pratos. Vieram as sobremesas: doces de todos os tipos, coalhadas, queijos, frutas, após o que foi servido um café delicioso de um bule fumegante.
Terminado o banquete, o tenente chamou João para uma conversa em particular e saiu com ele para os fundos, atravessando o pomar. Ao pé de uma frondosa mangueira bourbon havia um banco feito com uma prancha de cedro, onde eles se sentaram com os olhos voltados para a magnífica paisagem que se descortinava à sua frente. O pomar ficava no alto de uma encosta que morria num imenso vale verdejante cortado longitudinalmente por um largo ribeirão de águas muito límpidas que corriam sobre pedras formando pequenas cascatas aqui e ali. O vale seguia por entre montanhas que se perdiam no horizonte, para o lado norte.
A grande casa da fazenda ficava no ponto mais alto de uma vasta região e, à beira do pomar, onde estava o banco de cedro, era oferecido ao observador um quadro de rara beleza postado a seus pés.
- João, - começou o tenente – há algum tempo que quero ter essa conversa com você.
João assentiu com a cabeça e o tenente continuou:
- Em primeiro lugar, quero que você saiba que notei o empenho com que seu primo Diogo fez as vezes de Santo Antônio casamenteiro, e sei que há, entre você e Helena, uma grande possibilidade de algo sério vir a acontecer, e quero dizer que, de minha parte, faço muito gosto que vocês estejam juntos, porém também devo dizer que isso não se dará sem muita luta da parte de vocês dois, pois o coronel, meu sogro, ciumento do jeito que é, não aprovará. Andaram batendo-lhe aos ouvidos certas notícias de peripécias suas que o deixaram de “orelha em pé”.
João sentiu uma pontada de apreensão. Sua fama de perseguidor de rabos de saia estava se espalhando onde não devia.
- Bem, - continuou o tenente – creio que também não é segredo que não me dou muito bem com o velho e até já tivemos um ou outro “arranca rabo”.
- Já ouvi falar, tenente.
- Pois é! Mas para o ano, devo entrar em posse de alguns alqueires de terra, ali mesmo, no alto da pedreira, confrontando com seu tio Honório, de que o velho abriu mão em meu favor, depois de muito bate-boca, como não me dou com essa coisa de terras, gostaria de passá-las a você. São terras de primeira, um ótimo começo para alguém da sua idade e com a sua fibra!
- Mas, tenente, onde vou arranjar esse dinheiro?
- Seu pai, tenho certeza, poderá ajudar. Tenho ouvido dizer que ele vai vender a Limeira, por causa do estado de saúde de sua mãe. Como pretendo vender barato, creio que a metade você pode conseguir com seu pai, e mais algumas economias que por certo deve ter lá debaixo do colchão. Você me dá a metade e o restante paga como puder, no prazo que lhe convier, com algum juro bem módico. Para mim será uma aplicação segura, e para você, um empurrão que, tenho certeza, saberá aproveitar.
- Tenente, - disse ele, surpreso e pensativo, analisando a proposta – eu tenho receio de assumir uma dívida desse porte. Aquelas terras são de primeira mesmo, mas terei de derrubar o mato para poder plantar, e não sei quanto tempo isso levará!
- Não se aflija com isso. Não vou exigir-lhe além de suas forças e não tenho pressa. Será tudo como você puder, e quando puder.
- Bem, nesse caso peço apenas um tempo para falar com meu pai.
- Não se apresse. Quando resolver tudo, me procure. Saiba também que o que puder fazer por você e Helena fá-lo-ei com muito gosto.
- Obrigado, tenente, tentarei corresponder à sua confiança.
Levantaram-se os dois e empreenderam o caminho de volta à casa, com passos lentos e preguiçosos, por entre as árvores frutíferas que assombreavam aquela quarta de chão.


Dentro da casa, enquanto Mariana e suas ajudantes terminavam o serviço do almoço, lavando panelas e louças, distribuindo comida para os empregados, os hóspedes faziam a sesta ou jogavam torrinha na varanda, ou ainda passeavam pelo jardim.
João e o tenente encontraram-se com Helena no portão dos fundos e ela convidou-os para um passeio a cavalo até a hora do café. O tenente, após conferir a situação, com um sorriso matreiro e cúmplice, declinou o convite.
- Não, obrigado, Helena. Vão vocês dois que devem ter muito o que conversar. Aproveitem enquanto ninguém os observa.
Os jovens não esperaram nova ordem. Dirigiram-se, apressados, às cocheiras para selar os animais e em pouco tempo galopavam pelo pasto, rumo ao riacho. Na baixada, contiveram as montarias, diminuindo o passo, e só então lembraram-se das palavras, ainda tímidos, a buscar coragem para dizer o que sentiam.
- Vamos ao córrego dar água aos cavalos? Helena quebrou o silêncio constrangedor.
- Sim, vamos.
Desmontaram à beira do riacho, deram de beber aos animais, prenderam-nos a um galho mais baixo e sentaram-se numa pedra grande à beira d'água, olhando a corrente que descia lavando os cascalhos do fundo. A timidez os atrapalhava com as palavras, mas o tempo era curto e foi preciso vencê-la.
- Devemos nos apressar; - começou Helena – logo darão pela nossa falta e as coisas podem se complicar!
- Sim, então é melhor falar sem rodeios.
- Sim, é necessário.
- Creio que o primo Diogo já fez com que nos conhecêssemos muito antes deste dia. Para mim, foi uma confirmação do que já esperava e estou encantado!
- Também para mim, foi uma satisfação indescritível conhecer você. É mais do que poderia imaginar!
- Mas, estive até agora há pouco a conversar com o tenente, seu tio, e ele me ofereceu algo irrecusável, apesar de também me alertar que seu avô será contra esse namoro.
- Meu avô tem para comigo um desvelo de pai, mãe e ama de leite, se se puder juntar tudo isso em uma só pessoa. Preocupa-se com meu futuro e, quando andaram lhe dizendo certas coisas a seu respeito, ele ficou ressabiado.
- Sim, eu sei. Mas é uma história muito longa para lhe contar agora. O mais importante é que quero que você seja minha esposa. Talvez esteja sendo muito direto e apressado, mas as circunstâncias assim o exigem. Como eu dizia, o tenente ofereceu-me uma chance de começar a vida com um empurrão significativo e para isso quero ter você a meu lado.
Ela estava deslumbrada com a força que parecia vir de dentro dele. Algo assim como o que move aquele guerreiro que não se entrega, não se dobra diante de nada. Ficou calada, apenas admirando-o e ouvindo o que dizia.
Ele continuou:
- Sei de tudo o que dizem por aí, como também tenho consciência de que não tenho vivido como um monge, mas com você será diferente. Pela primeira vez começo a me esquecer a causa de tudo o que tem dirigido minha vida.
- Está bem, mas terá de ser um namoro às escondidas até que você tenha condições de enfrentar meu pai e meu avô. Meus irmãos me apoiarão em qualquer coisa que decidir e meu pai tem muitas preocupações além de mim, mas com o vovô não se poderá nem sequer tocar no assunto antes da hora. Ele é teimoso como uma mula.
- Por enquanto nos encontraremos sem que o velho saiba. Primo Diogo nos ajudará e em pouco tempo falarei com seu pai para oficializarmos o noivado.
A conversa foi encerrada nesse pé, pois já estava se fazendo tarde e logo dariam pela falta dos dois na casa grande.
Montaram apressados e Helena seguiu na frente. Devia chegar só, para não despertar suspeitas.
Após a merenda, João se despediu de todos e foi pegar o cavalo que deixara preso à sombra de uma goiabeira, na cerca do pomar. Primo Diogo o acompanhou, ansioso para saber como iam as coisas.
- E então, primo, agora que conheceu a moça de quem tento lhe falei, diga-me se ela não o agradou, se não é exatamente como eu dizia!
- Ela é tudo isso e muito mais, caro primo. Nós saímos ser sermos vistos, enquanto todos dormiam a sesta, e pudemos conversar bastante.
- Mesmo? E sobre o que falaram?
- Decidimos, primo! Vamos nos casar!
Primo Diogo sentiu um baque, como se lhe tivesse jogado um balde de água fria.! Não esperava por tanto e estava ainda tentando se recuperar do susto quando João lhe disse:
- Vamos precisar muito de sua ajuda, primo.
- Sim, sim ... quer dizer ... como?
- Acorde, primo. Estou a dizer-lhe que precisaremos muito de você, pois teremos de namorar às escondidas e precisamos de um confidente. Nesse caso, ninguém melhor que o primo Diogo, nosso casamenteiro.
Diogo ainda estava embasbacado, porém feliz.
- Qualquer coisa que precisarem, caro João!
- Você conhece seu avô, não? Sabe o que teremos de enfrentar!
- Sim, vovô é mesmo um osso duro de roer! Mas damos um jeito.
Apertaram-se as mãos calorosamente e o ágil cavaleiro galgou a sela sem ajuda dos estribos. Acenou para o primo e deixou que o alazão tomasse o caminho a passo solto, passando pela porteira e desaparecendo sob as copas das árvores do cerrado.



































- VI –


A Limeira foi finalmente vendida e a família se mudou para a vila, onde "sô" Alfredo comprara uma casa grande, próxima à estação da estrada de ferro. Era uma casa de esquina, com uma varanda cercada por um corrimão de ferro fundido, guarnecido de madeira, que terminava em uma escada de pedras brancas cevando a um jardim lateral. O terreno era em declive e a linha do nível da calçada da rua em frente seguia a uma altura, nos fundos, bastante para haver um cômodo à guisa de porão, onde se chegava por um outro jardim na parte posterior.
Uma parte do dinheiro arrecadado com a venda da Limeira foi passado diretamente ao tenente Américo como entrada na compra das terras. Para isso João desistiu de sua parte na herança dos pais, e ali, para ele, começava uma nova luta, talvez mais árdua que a de até então. Tinha apenas o fiel alazão, o carro de bois, mais alguns trocados e, o principal, a coragem.
As terras que ele havia adquirido eram quarenta alqueires no alto de uma colina. Para o lado do nascente, o declive se acentuava até tornar-se um morro íngreme, parte do qual era uma pedreira com vegetação rala, algumas aroeiras brancas, onde seria impossível passar o arado. A outra parte era um mato denso com árvores altas, madeira de lei: aroeiras vermelhas, pereiras, paus d’alho, cedros, ipês e perobas, numa terra roxa, escura, argilosa. Ao pé do morro, uma nascente brotava num verdadeiro cio da terra, expulsando água cristalina como um espelho, à sombra de um pau-terra rodeado de urtigas. Ali, com outras nascente menores, formava-se um riacho que corria sobre cristais de rocha lilases entre pedras de fogo, dando à correnteza uma aquarela multicolorida, escondida na sombra das embaúbas, tabuas e capim colonião nas margens férteis.
À medida que se seguia para o poente, a densa mata ia cedendo lugar, aos poucos, a um cerrado de arvorezinhas de casca grossa onde o gordura formava um tapete que tentava engolir os arbustos.
Era tudo uma terra virgem, indomada, a pedir um braço forte que a dominasse e a fizesse parir.
Sentado sobre um toco de árvore cortada, ele admirava tudo isso com os pensamentos a borbulhar, tentando decidir o que deveria ser feito primeiro. Estava apaixonado, e essa paixão por cada palmo daquela terra, a “sua” terra, enchia-lhe o coração de vontade, mas também de medo.
- Que será de mim, meu bom Deus? Poderão estes braços vencer tamanho desafio?
A poucos passos, o fiel alazão se deliciava com os tenros brotos de capim amargoso à beira da mata.
- João, - disse ele a si mesmo – de nada adianta ficar aqui a pensar e cismar nesse talvez sim, talvez não interminável. Mãos à obra, que o tempo não espera.
O primeiro passo seria cercar aquele capim gordura, um pasto nativo, e fazer um curral onde pudesse ordenhar suas poucas vacas; o capim até sobrava para todos: vacas e bezerros, dez bois carreiros e, naturalmente, o alazão, companheiro de tantas jornadas.
Decidido, ele montou e dirigiu-se para a vila. Era pelas horas do almoço. Almoçaria em casa (não conseguia se acostumar que “lá em casa” era agora lá na vila) e depois queria ter um dedo de prosa com "sô" Elias. Fazia falta a palavra de um amigo, e ele sabia que podia contar com o turco, que sempre tinha nos lábios palavras de ânimo, sempre com a mão estendida e o sorriso sincero.
O cavalo ganhou a reta, sob o estímulo da voz sonora:
- Vamos, companheiro, vamos a galope, que temos uma dura empreitada pela frente!
O valente animal parecia entender mesmo o pensamento de seu dono. Arrancou num galope ritmado percorrendo o caminho sem dar mostras de cansaço.


Na Fortaleza, o dia amanhecera agitado. Vários homes a cavalo estavam a posto desde os primeiros raios do sol, esperando pela ordem do coronel para reunir o gado. Era o dia da apartação, quando seriam separados os garrotes e novilhas de ano para serem marcados, curados de alguma bicheira, e soltos em pastos diferentes, apartados das mães.
Um ou dois dos garrotes melhores eram escolhidos para a reprodução, sendo deixados junto com as fêmeas, e os demais seriam castrados para engorda.
O coronel conversava com o capataz na varanda dos fundos da casa grande, distribuindo as ordens, dizendo por onde começar a arrebanhar o gado, quais pastos deveriam ser campeados e quais seriam os que iam receber a boiada nova, para que se corressem as cercas fazendo reparos onde fosse necessário.
Dadas as ordens e despachado o capataz, o coronel voltou-se para a cozinha onde o desjejum o esperava à mesa. Mariana havia preparado um bule de café, fervido o leite, e estava a tirar uma fornada de broas de fubá, coradas e apetitosas.
Helena também se levantara cedo. Gostava de ver o movimento dos currais, a lida do gado, e até ajudava às vezes, exímia amazona que era. Ao entrar na cozinha, viu o avô preparando-se para sair.
- A sua bênção, vovô, dormiu bem?
- Bom dia, minha neta, dormi como tronco caído!
Ajeitou o chapéu na cabeça, bateu alguns farelos da barba, deu uma outra olhada para fora, e disse à neta:
- Pode tomar seu café sossegada. Vou até ao curral para aviar o serviço e a espero lá.
O coronel andava cismado, como se desconfiasse de algo. Ela sentia que a tratava de modo diferente, com poucas palavras, numa seriedade incomum. Alguma coisa devia ter chegado a seus ouvidos.
Ela havia se encontrado com João quase que diariamente, mas o fazia sempre com todo cuidado possível. Saía para seus passeios a cavalo como sempre, sem deixar de cumprir seu itinerário costumeiro, e depois de certificar-se de não ser observada, tomava o caminho para os lados da pedreira, onde ele trabalhava nas novas terras. Ficavam a conversar durante algum tempo e ela retornava às pressas sem ser notada.
Porém, não se apercebera que um campeiro que passou numa trilha ali por perto a procurar uma rês perdida, vira os dois sentados na grama embaixo de uma peroba a confabular distraídos, e levara a notícia ao capataz, que por sua vez, contara ao patrão.
Naquela manhã, então, na mesa do café, ela se perguntava o que teria acontecido.
- Mariana, você notou que vovô está diferente? Parece emburrado, ressabiado! Agora há pouco saiu sem me esperar, e com cara de poucos amigos!
- Não sei não, dona Heleninha, mas ele não está muito alegre mesmo! Será que ficou sabendo de alguma coisa?
Mariana era boa confidente. Encorajava os encontros de sua patroinha a quem queria como uma irmã mais nova. Agora participava da preocupação da moça com o humor do coronel.
Helena terminou seu café e foi aprontar-se para o dia de lida de gado, que ela gostava como se fosse um dia de festa. Montava seu cavalo ligeiro e ajudava a arrebanhar as reses, apartar, e depois assistia à lida de cima da tábua mais alta do curral maior, aos gritos e risos, vendo os peões derrubarem os garrotes com laçadas certeiras, numa facilidade tal que até parecia que estavam lidando com crianças.
Ela tentou esquecer-se das preocupações enquanto se aprontava. Deu um suspiro e vestiu as saias de montaria, calçou as botinhas de salto carrapeta. Os cabelos foram presos numa trança amarrada com fita escura.
Quando saiu pela porta da cozinha, a primeira partida de cem garrotes irrompeu no curral grande, levantando uma nuvem de poeira. Mugiam e bufavam assustados, com as cabeças em movimentos rápidos, denunciando o nervosismo por serem presos pela primeira vez.
O coronel gritava ordens por sobre o tropel de animais agitados, numa confusão de chifres, poeira, bufados e os chamados dos vaqueiros que vinham nos rastros do rebanho.
"Sô" Juquinha, o capataz, encarapitado no coiceiro da porteira, procedia à contagem, agitando e estalando o rebenque de três argolas, a outra mão segurando o laço de couro de mateiro enrodilhado ao ombro.
- Cento e doze, coronel! – gritou ele – Do pasto da macaúba!
O coronel tomava notas e "sô" Juquinha gritava com os vaqueiros:
- Zé Bernardo, Valério, vamos, vamos! Começa a pegar que o serviço é muito!
Os peões, montados, entraram no curral e o rodeio começou.
Os animais, agitados, corriam em todas as direções tentando escapar às laçadas certeiras. Alguns tentavam saltar a cerca alta e se chocavam com as tábuas fortes, caindo ao chão desajeitadamente.
Rodando acima da cabeça os laços presos às chinchas, os vaqueiros escolhiam um novilho e quando este era seguro pelos chifres, imediatamente o outro laço era preso a um dos pés e os cavalos puxavam em direções opostas, botando o animal por terra. "Sô" Juquinha corria, com a faca charqueadeira e, apoiando um dos joelhos à altura dos rins do garrote, fazia a capação.
Helena, de cima da cerca, gritava, agitava os rapazes, ria-se e vaiava quando alguém errava a laçada, e a alegria contagiava a todos.
De repente, um garrote fumaça, um dos maiores do lote, saltou por sobre a cerca para outra manga, sob os gritos de todos. O capataz, demonstrando destreza e reflexo rápido, galgou, num segundo, as cinco tábuas do curral, deixando-se cair do outro lado já com o laço nas mãos e aprontando uma grande laçada que rodou sobre a cabeça. O mestiço corria, tentando se esconder entre as novilhas que ocupavam o curral menor e "sô" Juquinha dançava com ele tentando fazê-lo correr junta à cerca. Quando conseguiu apartá-lo, colocou-se entre ele e o lote de novilhas, provocando-o. O fumaça arremeteu uma carreira desabalada e o vaqueiro atirou o pealo, cingindo-lhe as patas dianteiras e fazendo-o rolar por terra, sob os aplausos de todos.
Em pouco tempo, o primeiro lote estava pronto e apartado e os garrotes foram soltos no piquete próximo para observação enquanto a turma se reunia para um café, dando um descanso aos cavalos antes de ir arrebanhar outros mais que pastavam na invernada distante.
Desta vez, Helena juntou-se aos vaqueiros, acompanhando o capataz que havia divido a turma em dois grupos. O primeiro campearia para o lado leste, nos pastos que se estendiam até o retiro do Sapucaí; o segundo, junto com ele e Helena, sairia para o norte, para as invernadas do retiro da onça e do monjolo velho.
Juntariam o gado que conseguissem até a volta do dia, deixando para o próximo os que ficassem para trás.
Haviam andado já uma boa hora quando avistaram ao longe, mais adiante no cerrado, um bando de urubus voando em círculos e, fustigando as montarias, para lá se dirigiram.
- Ou é animal morto ou tem vaca dando cria! – profetizou "sô" Juquinha.
À sombra de um pé de marolo, depararam-se com uma bela vaca gir, de pelagem chita, que lambia carinhosamente o bezerro recém nascido, secando-o sobre o gramado rasteiro.
- Cuidado, dona Heleninha, ela pode querer investir. Fique pronta para correr.
A chita olhou-os com cara de poucos amigos, sacudindo a cabeçorra de chifres curvos, como a avisar para que não se aproximassem mais.
Os vaqueiros vinham gritando atrás de um lote misto de vacas, garrotes e bezerros, acompanhados por um touro grande com um alto cupim que jogava de um lado para o outro a cada passada. Deixando a chita e sua cria em paz, eles correram a juntar-se aos outros.
O calor do meio dia arrancava suor de montarias e homens que, àquela hora já haviam reunido gado suficiente para encher os currais, sem contar ainda que o outro grupo, que fora para Sapucaí, deveria trazer outro tanto. Começaram então a tanger o rebanho em direção à Fortaleza.


- É verdade, "sô" Elias, estou arrochado! Comprei umas terras de um parente que me facilitou muito o pagamento, mas ainda é terra virgem e precisa ser desmatada para plantar. É serviço que não acaba mais e também não tenho nem como comprar o arame para cercar um pasto para o gado. Meu dinheiro todo se foi!
- Mas você tinha o dinheiro todo para a terra?
- Meu pai me arranjou um tanto, sobre a herança, e eu tinha uns trocados que juntei nesses anos todos derrubando cerrado e puxando com os bois. O dinheiro foi suficiente para a metade e o parente me deu prazo pra o resto. Porém estou com muito medo, "sô" Elias, de não dar conta do recado.
- Ora, amigo João, você está apavorado sem motivo. Não é qualquer capãozinho de mato que vai fazer frente a quem até hoje viveu a desafiar até a própria coragem!
- É, "sô" Elias, mas não é só um capãozinho de mato! Tem cada tora que minhas juntas de bois não agüentarão arrastar!
- Meu amigo, sei que em matéria de trabalho nada lhe será estorvo, pois lhe conheço a fibra. O que o está incomodando além disso?
- "Sô" Elias, eu estou só e sem recursos. O trabalho mesmo não me preocupa, mas terei despesas e não posso mais recorrer a meu pai. Eu penso nisso dia e noite!
- João, - o turco pensou por uns minutos – eu vou lhe dizer uma coisa: não sou um homem rico, mas para mim você não é só mais um freguês, é um bom amigo. Aqui no meu armazém você tem crédito sempre para tudo o que precisar. E mais: tenho algumas economias, não muito, mas, de coração, estão ao seu dispor. Não se acanhe de me pedir se ficar meio apertado.
- Mas como poderei lhe pagar, meu amigo?
- Olhe, digamos que estou fazendo um investimento. Se der certo, recebo com juros e se não der, nós dois perdemos e fica tudo por isso mesmo. Você precisa trabalhar de cabeça fria, então não carregue nas costas mais o peso de ter de me pagar a qualquer custo. Trabalhe como você sabe fazer, e muito bem, e em breve estaremos comemorando sua vitória. Estamos acertados?
- "Sô" Elias, não tenho palavras para lhe agradecer! O senhor me estende a mão numa hora de muita necessidade de minha parte, e lhe digo que jamais esquecerei esse dia de hoje!
- Eu só desejo seu sucesso, meu amigo!
Ele despediu-se cheio de confiança. O apoio do amigo o fortalecera e um ânimo sem igual se apoderou de seus pensamentos.
Montou no alazão e seguiu para o lado de suas novas terras. Precisava encontrar-se com Helena para dar-lhe a boa notícia, então dirigiu-se direto ao local de costume, à sombra de uma peroba rosa no mato da pedreira e quando chegou, ela já se preparava para partir.
- Olá, João! Achei que você não viria hoje!
- Estive até agora há pouco conversando com o "sô" Elias, e o que falamos me deixou tão animado que vim correndo lhe contar! Finalmente vou começar a abrir as novas terras e em breve, se Deus quiser, poderei falar com seu pai!
Isso é realmente um ótima notícia. Acho até que vou me demorar mais alguns minutos. Lá na Fortaleza estão lidando com o gado e não darão pela minha falta.










- VII –


Cinco horas da manhã. A boiada carreira, atrelada ao carretão, marchava preguiçosa pelo trilho batido em direção ao mato alto.
No pequeno cercado de paus roliços, as vacas já tinham sido ordenhadas e o leite, no latão, descansava sob uma cobertura de sapé que abrigava os bezerros novos.
Mais um dia começava, no vento frio do mês de maio. Para os lados do nascente, um clarão ainda sem forças anunciava a chegada do sol e ele chegou ao eito para mais um dia de luta.
De machado em punho, dirigiu-se à primeira árvore, depois de prender os bois a um tronco deitado e, fazendo o sinal da cruz como de costume, sempre antes de começar o trabalho, vibrou o primeiro golpe no tronco do ipê roxo. O pesado machado, empunhado pelos braços fortes e jovens, era de poder destruidor sem igual, abrindo profundas brechas a cada golpe. Em pouco tempo a soberba árvore tombava vencida, esparramando pelo chão a imensa copa verde, num estertor de morte. Os galhos maiores tornavam-se bons mourões para a cerca, e o resto da ramada, depois de seca, seria lenha, vendida por um bom preço na estrada de ferro.
O tronco, enorme e pesado, era arrastado para a beira do eito no carretão, num processo trabalhoso ao extremo para uma só pessoa. Era preciso cavar dois buracos estreitos e profundos nos dois lados à altura do pé do tronco e na distância das rodas do carretão; e mais um interligando os dois, onde se apoiaria o eixo. Depois levava o carro de ré, jogando as rodas dentro dos buracos até que o eixo se colocasse abaixo da ponta do tronco. Feito isso a tora era amarrada com correntes e os bois arrancavam, estirando nas cangas e, à medida que as rodas subiam pelas paredes das valas, erguia-se a cabeça do gigante que era arrastado até a beira da estrada de onde seria levado à serraria.
A luta era renhida e o guerreiro, incansável! Vencer e vencer; só havia a vitória em seus pensamentos. Cada machadada era um passo a mais no caminho do futuro, da realização dos sonhos. Nada era obstáculo, nada o esmorecia.
A madrugada o encontrava desperto, atrelando o burro à carrocinha, presente do amigo turco para que ele levasse o latão de leite até a vila e também para o transporte mais leve. Saía da vila acompanhado pelas estrelas, enfrentando o frio do inverno, e só retornava quando o poente se fazia vermelho esmaecido, na boca da noite. Durante o dia só parava para engolir a comida fria de um caldeirão de ferro esmaltado que a mãe lhe preparava quando ele retornava à vila, após a ordenha, às pressas, para não perder o ritmo do serviço.
Não havia também domingos, feriados ou qualquer outro dia de folga. O terreno deveria ser desmatado antes que começassem as chuvas, para receber as mudas da futura lavoura de café.


Na Fortaleza, as mudanças prenunciavam o começo de uma nova era. De uma forma lenta e sutil, a vida ia se transformando, as pessoas seguindo novos rumos, o tempo passando.
Um dia o coronel começou a se sentir só. Descobriu-se desacompanhado, solitário à frente de seu império. A mulher adoecera e partira, havia muito tempo; depois as filhas foram se casando e abandonando a grande casa da fazenda, construindo suas próprias vidas; a filha Umbelina falecera ainda jovem e o marido casara-se novamente, lá na Guaíra, onde possuía também muitos alqueires de terra roxa, de primeira, e agora as noites, para o velho coronel, eram longas e tristes, perdidas em reminiscências. A insônia o assaltava nas madrugadas, trazendo ao quarto onde repousava os fantasmas do passado. A grande cama tornava-se uma nau a velejar pelo tempo, a levá-lo de volta aos tenros anos da infância, quando o Dioguinho moleque de calças curtas brincava nos vastos pomares do Jaborandi, olhando os escravos a trabalhar nos campos. Depois via-se no dia do seu casamento, arranjado pelo pai; a construção da grande casa de madeira, na fazenda Fortaleza, o começo de uma nova família. O primeiro filho, que morrera ao nascer, agora lhe aparecia chamando-o para perto de si, dentro de um imenso lago de águas azuis.
Naquela manhã, ele resolveu que dividiria a fazenda. Tinha ainda a presença dos netos para confortá-lo, porém sabia que eles também estavam prestes a alçar vôo.
Altino era o neto mais velho e o que ele gostaria que fosse seu braço direito, mas se fora para Guaíra com o pai e estava de casamento marcado com uma moça desconhecida para ele. Mas daria a ele uma parte bem grande de terras, no retiro do monjolinho e talvez isso o trouxesse mais para perto.
Tonico, o caçula, também enrabichara-se por uma moça da cidade grande que ele também desconhecia, mas como não via com bons olhos as moças da cidade, ficava sempre com um pé atrás.
Lica, que herdara o nome Umbelina da mãe, se casara também em Guaíra com um alfaiate mulato e vivia com o novo marido à beira do Rio Grande, afastada da família a ganhar uns trocados atravessando boiadeiros numa canoa a remo, ou carpindo alguma pequena rocinha, pescando para comer.
Helena, sua predileta, estava de amores com seu sobrinho neto, um mulherengo incorrigível, o que muito o desgostava.
- Bem, dissera, num acesso de raiva – ao Altino darei as terras do monjolinho; ao Tonico, que é homem, darei outro pedaço da Fortaleza, mas juro que não darei um palmo sequer de terras a um mestiço ou a um rufião perseguidor de putas!
No ocaso da vida, o coronel se deixara dominar talvez pelo ranço escravagista e ditatorial dos antepassados. O medo e o egoísmo arraigado, além do sentimento de impotência no domínio da vontade alheia o levavam a agir como se quisesse levar tudo consigo para o além quando a longa noite o alcançasse, e foi de péssimo humor que acabou por dividir seu império que se perdia de vista do alto da Santa Cruz ás baixadas do Jaborandi, quase em Minas Gerais.
Helena assistiu a tudo calada, sentindo-se profundamente triste, não pelas riquezas perdidas, pois em sua alma não havia lugar para o apego a bens materiais, mas pelo frenesi que tomara conta daquele velho de longas barbas que era o avô tão amado de seus dias de infância. Quando se tornou público seu namoro com João, ela não fazia senão ouvir desaforos e ameaças, que não lhe esmoreciam a coragem, mas que lhe oprimiam o coração.
Quando o ar se fazia muito carregado, ela encilhava seu cavalo e saía a galopar pelos campos além das mangueiras do pasto, na encosta do morro, descendo pela trilha até o riacho onde conversara com João pela primeira vez, e as doces lembranças que lhe invadiam a alma eram um bálsamo para aquela dor que suportava sem uma queixa sequer, renovando a cada dia, a cada momento sua fé no futuro próximo, na realização de seus jovens sonhos cor-de-rosa.










































- VIII –


E veio setembro.
As primeiras chuvas lavavam a poeira das estradas e molhavam a terra seca que despertava, parindo brotos verdes por toda parte.
De enxadão em punho, com as roupas ensopadas, ele preparava as covas para as mudas de café sem ao menos se dar conta da água que se lhe despejava nas costas.
Cinco alqueires do mato cerrado de antes tinham se tornado terra limpa ao cabo de quatro meses de trabalho sem descanso. Depois de retirar a madeira pesada e encoivarar os restos, ele marcou as linhas e, medindo as distâncias, cavou as covas de três em três metros, batendo a terra afofada com adubo e devolvendo-a de novo à cova.
Urgia agora fazer o plantio para aproveitar as águas fartas que se derramariam até março.
A saracura cantou na boca da noite e ele juntou as ferramentas, jogando-as ao ombro. Subiu o morro vagarosamente, com as solas das botinas se engrossando de terra que grudava a cada passo, como se empapadas de cola.
Ao chegar à pequena coberta do curral improvisado, um cavaleiro o aguardava. Era um moço de, talvez, vinte e poucos anos, magro como o cavalo pedrês que montava. Sob um chapéu de boiadeiro de abas largas, um cigarro de palha soltava baforadas ao vento. Ele desmontou, segurando o cabo do cabresto, e cumprimentou João, levando respeitosamente a mão à aba do chapéu.
- Boa tarde! O senhor deve ser o "sô" João que comprou as terras do tenente Américo, não é?
- Sim, sou eu mesmo.
- Quem me mandou foi "sô" Elias, lá da venda. Meu nome é Francisco Marques da Costa, mas todos me chamam de Chiquinho.
João apertou a mão calejada e magra.
- E então, Chiquinho, o que deseja?
- Eu sou de Minas, "sô" João, e tenho uma casinha e uns palmos de terra lá no Morro da Mesa, onde me esperam mulher e dois filhos pequenos, mas a vida me tem sido madrasta e depois de muito lutar sem conseguir nada, resolvi por o pé na estrada em busca de um futuro melhor. Vim andando por esses cerrados e cheguei à vila debaixo de chuva. Parei na venda daquele senhor turco para tomar um trago e rebater a friagem e, quando perguntei a ele por um serviço aqui por estas bandas, me disse que o senhor estava abrindo um mato para plantar café e que estava só. Resolvi então vir até aqui para lhe falar.
João olhou para ele, pensativo.
- Chiquinho, você me parece um rapaz sacudido e eu até que apreciaria uma ajuda, pois o serviço é muito. Mas estou no começo da vida aqui e não estou podendo pagar a um camarada para me dar uma mão.
- Quanto ao pagamento, vim eu pensando pelo caminho, não haverá aperto nenhum. Basta eu conseguir dar de comer à família e qualquer outra coisa fica para o dia em que o senhor puder. Eu sou um lutador, "sô" João, e quero vencer na vida. Tenho certeza que se o senhor for pra frente não me deixará para trás; por isso quero arriscar.
João ficou a pesar as probabilidades por um tempo, e depois se decidiu:
- Bem, sendo assim acho que poderemos nos acertar, embora não me agrade que você trabalhe sem ganhar nada, mas construiremos para você uma tapera lá na beira da mina d'água para vocês se acomodarem mais ou menos até as coisas melhorarem.
Naquela noite Chiquinho ficou na vila. Os dois conversaram muito, o boiadeiro contando a João a história de sua luta em um pedaço de terra improdutiva que herdara de um tio-avô na divisa de Minas Gerais com São Paulo. Ali ele tentaria construir sua vida, sua independência, pelejando com a terra arenosa por anos a fio, ao lado da corajosa esposa, com dois filhos pequenos. Muitos suores e muitas lágrimas foram derramados sobre o chão ingrato até que, um dia, cansado de pelejar em vão, resolveu mudar de ares e saiu a procurar um lugar onde pudesse ver as plantas crescerem e o gado engordar.
João, por sua vez contou ao amigo recente seus planos, o que estava empreendendo e o sacrifício que até então vinha fazendo, e assim conversaram até que o sono os vencesse por completo.
Pela manhã, no outro dia resolveram que Chiquinho mandaria avisar a mulher e os filhos e ficaria na casinha dos fundos, na vila até que fosse construído um teto que os pudesse abrigar, quando então ele levaria o carro de bois para buscar a mudança.
Prepararam um lugar à beira da mina, no fundo da lavoura recém plantada, roçaram o mato e ali ergueram uma tapera coberta de sapé, com paredes de pau-a-pique. Feita a casa, às pressas, Chiquinho partiu, o carro rompendo o silêncio da madrugada com seu canto choroso. Traria a família, os tarecos que eram sua mobília e alguns poucos animais que restavam de sua criação: algumas galinhas, um burrico e duas vacas magras.


À sombra da peroba rosa, os dois conversavam. As coisas não iam bem para eles, com as ameaças do coronel. Porém, dizem que o amor é como fogo no gordura seco e tentar fazer-lhe oposição é tentar apagar as chamas com gasolina, portanto, quanto mais o coronel esbravejava, mais atraídos se sentiam os dois jovens, um pelo outro.
As chuvas da manhã haviam dado lugar a um mormaço quente e abafado, na volta do dia, a relva molhada cintilando a cada olho de sol que se abria momentaneamente e quase que se podia ver o mato crescendo, no zumbido dos insetos. A natureza voltara à vida com todas a forças agradecendo a todo momento as bênçãos das águas.
- João, - dizia Helena, com um ar preocupado – o vovô anda de uma maneira insuportável. Nunca o vi assim, áspero, enfezado!
- Ele não nos quer juntos e fez disso um ponto de honra. Devemos esquecê-lo e saber que não haverá qualquer mudança. Tratemos de nossas vidas sem dar importância a isso, que um dia tudo se acerta naturalmente.
- É, acho que tem de ser assim. Já falei com o Altino, e meu pai deve vir no mês que vem.
- Quando seu pai chegar, marcaremos um dia para que eu fale com ele. Creio que precisaremos adiantar um pouco as coisas por causa do tio Diogo.
- Você não acha um tanto arriscado? A precipitação pode por tudo a perder!
- Não, não acho! E creio que meu pai poderá ajudar. Ele é muito amigo de "sô" Manoel e seu pedido será considerado.
- Bem, se você acha que deve ser assim, assim faremos.


Chiquinho chegou.
O carro vinha lotado, parecendo uma árvore seca com os galhos a acenar para o céu. Cadeiras e mesas de pernas para o ar, em cima de caixotes, trens de cozinha, balaios de milho, sacaria de mantimentos, tudo amontoado e amarrado por cordas meio podres e emendadas.
Sentados sobre a mesa do carro, com as pernas para fora e agarrados à esteira, vinham uma mulher magra e pequena, mas de aspecto forte, com os cabelos presos a um coque; um menino e uma menina vestidos em farrapos, magros e trazendo, estampadas nos rostinhos sujos, as marcas dos dias ruins que haviam sido suas vidas.
Acompanhavam o carro duas vacas magras e um burrico pêlo-de-rato, ao lombo do qual e sobre um pelego de carneiro, vinha o boiadeiro a dar ordens aos bois em sua voz grave e surda, o suor escorrendo-lhe no rosto.
João observava, encostado na cerca do curralzinho tosco, o quadro patético que se descortinava à sua frente a cainhar na areia fina e molhada da estrada batida.
Chegando à beira do curral, Chiquinho deteve os bois e adiantou-se saudando o novo patrão e apresentando a família.
- Bom dia, "sô" João! Eis aqui à sua frente – ele fez um gesto largo – tudo quanto possuo no mundo: uma família com saúde, graças a Deus, e um amontoado de trastes velhos! Esta é Sinh’Ana, minha mulher, aquela é a filha mais velha, Maria, e o outro é o Benedito. É uma família pequena ainda, mas espero que cresça como sua fazenda que, tenho fé em Deus, será muito grande um dia!
Ele dizia isso tirando o chapéu da cabeça e olhando para o céu, de onde, tinha certeza, Deus o observava concordando com suas palavras.
João cumprimentou a mulher e abençoou as crianças que, timidamente, haviam descido do carro e lhe estendiam as mãozinhas sujas de terra.
- Muito prazer, Sinh'Ana. Deus abençoe vocês, meninos. Como podem ver, a fazenda de que Chiquinho deve ter falado ainda está engatinhando, mas creio que em breve todos nós estaremos vivendo melhor, se trabalharmos bastante e Deus estiver conosco.
O carro desceu a encosta do morro, beirando a lavoura nova, em direção à mina d'água. Os animais foram soltos no pasto, depois de se fartarem na corrente cristalina do córrego. O carro foi escorado com um cambão para não emborcar e a mudança começou a ser descarregada na tapera de pau-a-pique. As crianças buscaram água para encher o pote de barro e as vasilhas da cozinha, gemendo sob o peso dos baldes na rampa que ia da mina à casa por um trilho recém aberto. Percebia-se nesses pequeninos lutadores uma força interior sem igual, por trás da aparência frágil.
O boiadeiro sorria orgulhoso sob um saco de feijão que tinha ao ombro.
Terminado o serviço, Chiquinho reuniu algumas pedras para fazer um fogão improvisado onde a mulher pudesse cozinhar a janta do primeiro dia.
- Qualquer coisa que precisar, - disse João – pegue o cavalo e vá buscar na venda do "sô" Elias. Vou passar por lá e deixar avisado que você está comigo e tem crédito para o que quiser.
Com essas palavras, ele deixou a família a instalar-se na nova casa e subiu o morro em direção ao curral.
O mormaço abafava a respiração e arrancava suores de todos os poros, avisando da chuva próxima, talvez à noite.

Terminado o serviço, Chiquinho reuniu algumas pedras para fazer um fogão improvisado onde a mulher pudesse cozinhar a janta do primeiro dia.
- Qualquer coisa que precisar, - disse João – pegue o cavalo e vá buscar na venda do "sô" Elias. Vou passar por lá e deixar avisado que você está comigo e tem crédito para o que quiser.
Com essas palavras, ele deixou a família a instalar-se na nova casa e subiu o morro em direção ao curral.
O mormaço abafava a respiração e arrancava suores de todos os poros, avisando da chuva próxima, talvez à noite.

- IX –


"Sô" Antonio Garcia, avô de João, era um velho pândego e um tanto destrambelhado, de longas barbas que lhe caíam sobre o peito da camisa e o colete, e com um chapéu amarrotado a cobrir os cabelos longos e anelados. Montava um burro escuro, com a cara sarapintada de branco, o que lhe fazia parecer ter a mesma idade do dono.
O coronel Diogo, seu irmão se cansara de tentar fazê-lo interessar-se pela grande fazenda que possuía, da Invernada à beira do Sapucaí, mas nada o fazia deixar de lado suas caçadas e pescarias, que eram sua única simpatia. Andara até, por uns tempos, chefiando a política local, mas tão logo pode, transferiu ao genro Honório aquilo que ele tinha como um verdadeiro aborrecimento.
Casara-se com uma prima, D. Cândida, possuidora de um gênio irascível e que se aproveitava do jeito despreocupado do marido para viver dando-lhe ordens até um tanto absurdas. Corria pela vila o boato de que D. Cândida assava negrinhos no forno para que as mães não interrompessem o trabalho, o que não devia corresponder à verdade, naturalmente, porém era mesmo uma mulher geniosa ao extremo.
Numa terça feira de carnaval, "sô" Antônio Garcia levantou-se cedo para atender a um chamado do irmão Diogo para uma reunião de família à hora do almoço.
Bem que seu desejo mesmo era ter ido pescar. O tempo estava bom, havia chovido na noite passada e, com as águas mais turvas, os peixes o esperavam, pensava ele. Mas, ainda que contrariado, selou o burro Chibante e pôs-se a caminho, sendo o primeiro a chegar à Fortaleza.
Helena recebeu-o sorrindo, à porta de frente.
- A sua bênção, tio Antônio, como tem passado?
- Deus a abençoe, sobrinha! Vou indo na medida do possível! Um velho nunca vai bem demais! Seu avô está por aí?
- Não, meu tio! Ele saiu a cavalo, logo cedo, sem dizer onde ia. Mas entre e venha tomar um café, que todos deverão chegar em breve.
Ele entrou, deixando o chapéu num prego da parede, e seguiu Helena até a cozinha, onde se sentou à mesa.
Mariana serviu bolinhos de polvilho, doces e um apetitoso bolo de leite, que o velho comeu com prazer, salpicando as barbas de farelo. Helena o observava divertida, admirando aquela inocência quase infantil, uma pureza de alma que se refletia no olhar sereno e no sorriso constante.
- Então, meu tio, o que há de novo?
- Ah, querida, nessa minha idade só há o “de velho”!
Helena riu-se e ele continuou:
- Mas seu avô anda maníaco feito prima Cândida, minha mulher. Ele pensa que não sei que quer dividir a fazenda, coisa que já deveria ter feito há muito tempo, e me quer aqui, junto com todo mundo. Não sei que préstimo terei eu na divisão de algo que não me pertence!
- Eu creio, tio Antônio, que sua vinda aqui está relacionada com João e eu. Acho que vovô quer lhe falar a esse respeito.
- Ah, só podia ser isso mesmo! Por falar nisso, Helena, o João já me contou sobre vocês dois e anda muito animado. Me parece que é sério, não?
- É, tio, mas estamos enfrentando muitos problemas com o vovô. Ele está sem me dirigir a palavra, emburrado, azedo, como se eu tivesse praticado um crime.
- Meu irmão é um asno quando encasqueta alguma coisa. Não perdoa erros a ninguém, e quer ser o juiz, o júri e o carrasco. Mas se é por isso que meu irmão me quer aqui, para falar mal de meu neto, ele terá em mim um asno e meio!
Terminado o café, "sô" Antônio levantou-se, fuçando nos bolsos, à procura de palha e fumo para fazer um cigarro. Tirou do bolso do colete um pedaço de fumo de corda e um pequeno canivete, enquanto se dirigia para um caixão que ficava no rabo do fogão de lenha, cheio de palhas de milho para acender o fogo. De lá sacou uma cabeça de palha e voltou a sentar-se, escolhendo as mais finas.
- Sobrinha, - continuou ele, enquanto cortava com capricho uma palha escolhida – eu sei bem o que é conviver com gente turrona! Você nem faz idéia do que é aturar a prima Cândida! Imagine que ela agora cismou que tenho açúcar no sangue e me proibiu de fumar e comer doce!
- Verdade, tio?
- Ah, mas eu a driblo direitinho! Deixo a binga, com a pedra e o fuzil, atrás de um tijolo solto lá em casa. O fumo, eu guardo dentro de uma botina velha, no armário do quarto, e ela nem se dá conta!
- Ora, tio Antônio, o senhor está até parecendo um moleque!
- É, sobrinha, ela não me dá trégua e então eu a engano. Como meu doce à noite, quando ela está a roncar na cama!
Helena e Mariana, que havia deixado as panelas de lado e se sentara à beira do fogão, se desmanchavam em risadas e "sô" Antônio também se divertia contando suas traquinagens. Ficaram os três de conversa, na cozinha, até que os outros começaram a chegar.
"Sô" Manoel, que estivera com Altino nos currais, foi o primeiro a entrar, depois de limpar as botinas num rapador feito com uma enxada de corte virado para cima e presa a duas pedras da calçada ao pé da escada. Cumprimentou o velho e sentou-se, pedindo um café, já com o cigarrinho virando na boca.
Aos poucos, todos os outros foram chegando e se acomodando na mesa da sala à espera do coronel que não demorou. Dali a pouco o tropel de seu cavalo se fez ouvir no terreiro dos fundos.
Com uma saudação seca, ele passou pela cozinha, chamando os parentes para o salão.
Uma vez acomodados em volta da mesa comprida, os convidados conversavam em meio tom quando o coronel se postou em pé à cabeceira e, olhando para o grupo, começou, depois de pigarrear para chamar as atenções:
- Bem, bem, creio que todos já fazem idéia do motivo pelo qual os chamei aqui hoje. Vou fazer a divisão das terras que possuo e todos vocês, menos o meu irmão Antônio que testemunhará minhas palavras, serão os beneficiários. "Sô" Manoel Osório, marido de minha falecida filha Umbelina, portanto meu genro, representará seus filhos: Altino, Lica, Helena e Tonico.
O coronel fez um longo discurso, valorizando a grandeza de seu gesto de fazer doação de suas terras ainda em vida, para que os parentes pudessem prosperar o quanto antes. E seguiu, com o silêncio absoluto dos presentes, dividindo seu reino em pedaços.
Ao final do longo discurso, como se quisesse ainda mais atenção, ele ficou em silêncio por alguns minutos. Propositalmente deixou por último a divisão da Fortaleza e valorizou o momento com outro pigarrear demorado. Olhou, em seguida para todos os rostos e disse:
- A fazenda Fortaleza, sede de todas as terras que possuo, será dividida entre alguns de meus netos. Reservarei essa casa grande e alguns alqueires em volta para viver até o fim de meus dias nessa terra de Deus, e quando eu me for desta para melhor, meu neto Avelino deverá ocupar meu lugar aqui. Meu neto Tonico anda enrabichado por uma moça da cidade, de quem nada ouvi falar, portanto não conheço, mas sendo ele um homem, não o deixarei sem nada. Há um pedaço aqui entre a pedreira e o córrego da porteira velha, que deve ter mais de cem alqueires e isso deve contentá-lo. Além do córrego, indo até o Monjolinho, ao norte, e até o Batataes Velho, a oeste, será a propriedade do meu neto preferido, o Altino, que já provou ter a fibra herdada tanto da minha família como a do seu pai, meu caro genro "sô" Manoel Osório.
Fez-se um silêncio sepulcral. "Sô" Antônio Garcia fitava o irmão com uma pergunta muda no olhar, meneando a cabeça em seguida como se desistisse de qualquer palavra. Apenas comentou:
- Amém!
- Ainda não terminei! - disse o coronel, autoritário. – Quantos às meninas, ficarão com o que seus maridos conseguirem ganhar. De mim não terão qualquer ajuda, visto que escolheram homens sem qualidades para maridos. Lica se casou com um remendão que ainda tem a praga de ser mulato, e dizem que vive lá pelo Rio Grande remando uma canoa; Helena se deixou levar pela conversa de um libertino sem vergonha que, muito infelizmente, é meu sobrinho neto!
Nessa altura, "sô" Antônio interrompeu o falatório.
- Meus ouvidos estarão me pregando peças, ou o senhor meu irmão terá mesmo dito algumas coisas pesadas a respeito do meu neto?
O coronel, surpreso com a interrupção, demorou um pouco a entender o sentido da pergunta. Piscou algumas vezes antes de responder.
- O senhor meu irmão ouviu muito bem! Seu neto é um devasso indigno de se aproximar de uma moça de família honrada como minha neta Helena.
- Muito bem, senhor coronel Diogo Garcia de Figueiredo Sobrinho, quer dizer que se arvorou em juiz do caráter alheio? E mais ainda, toma resoluções que prejudicam aquelas a quem diz aos quatro ventos que ama com total desvelo?
- Esse assunto não lhe diz respeito, "sô" Antônio Garcia!
- Não? Então por que cargas d'água mandou me chamar? Para que eu ficasse ouvindo sua arenga sem dar um pio?
- O senhor foi chamado aqui para testemunhar a doação que estou fazendo e não para emitir opiniões!
- Pois eu lhe digo que não ouvirei mais seus despropósitos a respeito de minha família, que aliás também é sua, de cabeça baixa como um lacaio.
- Não são despropósitos, são verdades.
- Não se esqueça de que o pai das meninas está presente e é a ele que cabe opinar ou decidir sobre o casamento de suas filhas.
- Senhor Antônio Garcia, em minhas terras mando eu e ponto final.
- Pois que assim seja, faça como lhe der na telha, porém não mais me chame para ouvir suas asneiras.
Dizendo isso, "sô" Antônio se levantou e dirigiu-se à porta, apanhando o chapéu.
Helena apressou-se em acompanhá-lo, tentando apaziguar-lhe o ânimo, pois o pobre velho tremia, nervoso, deixando transparecer a tempestade que carregava no peito. Alcançou-o no portão do jardim, detendo-o a segurar-lhe carinhosamente o braço.
- Mas o que é isso, meu tio? Deixe de zangar-se assim, que não lhe faz bem!
- Pois é, minha querida, e dizem que o destrambelhado sou eu!
- Não dê importância ao que vovô disse! Ele está fora de si!
- Mas ele prejudicou você e sua irmã apenas por capricho, impondo sua vontade! Que pode ele entender do amor dos jovens, uma vez que há muito deixou de ser jovem? Também foi um desmiolado em sua juventude e nunca amou a ninguém além de suas preciosas terras e sua fortuna!
- Sossegue, meu tio. O mal que ele me fez foi ao coração, não à bolsa! O coração cicatriza e o trabalho enche a bolsa e o estômago!
O bom velho voltou-se, uma brilhante lágrima a escorrer-lhe dos olhos sobre as faces barbadas e, aproximando-se, beijou a sobrinha na testa sem nada dizer, um soluço sufocado cortando-lhe as palavras. Virou-se e caminhou para seu burro velho, partindo com um aceno tímido.


O sol estava quente e os dois homens, com as roupas molhadas de suor, capinavam a lavourinha nova, agora já muito bem enfolhada, com um verde escuro e saudável, graças à fertilidade da terra recém desmatada e aos cuidados de dois lutadores incansáveis.
As enxadas se movimentavam rápidas e ao mesmo compasso, como que regidas por um maestro invisível, cortando ervas daninhas e revolvendo a terra para que as arvorezinhas crescessem livres de qualquer concorrência.
Ao chegar ao fim de uma rua, Chiquinho fez uma pausa e, tirando de trás da orelha um cigarro de palha meio fumado, dirigiu-se para a sombra onde havia deixado a cabaça d'água, coberta com alguns ramos para garantir-lhe o frescor. Bebeu uma caneca, deixando escorrer pelos cantos da boca, nos bigodes, dois filetes brilhantes que lhe molhavam o rosto de barba por fazer, e desciam pelo pescoço, refrescando o peito.
- "Sô" João, vem vindo aí um cavaleiro. – disse ele, batendo o fuzil na pedra de fogo para acender a binga.
João parou o que fazia e adiantou-se para a cabaça, bebendo também, enquanto esperava que o visitante se aproximasse.
- É meu avô, Chiquinho. – disse ele com um sorriso – Eu conheço de longe aquela figura, em cima daquele burro velho!
O cavaleiro chegou, parando o animal à sombra.
- A sua bênção, vô Antônio! Apeie e venha tomar uma caneca d'água fresca que o sol está quente!
O velho apeou aceitando a caneca que João lhe estendia, enquanto limpava o suor da testa com a manga do paletó.
João observou-o enquanto bebia, notando um tremor diferente na mão que segurava a asa da caneca, assim como o ar de preocupação, o semblante carregado.
- Então, meu avô, o que o traz por essas bandas nestas horas de sol forte?
- João, eu preciso conversar com você. Seria bom se pudesse me acompanhar até a vila. No caminho eu o porei a par de tudo.
- Se é tão importante assim, vovô, vamos embora.
Ele encostou a enxada ao tronco da árvore, dizendo ao companheiro que talvez não retornasse naquele dia, e subiu o morro acompanhando o avô, a pé, até o curral para selar o cavalo.
Uma vez na estrada, o velho desembuchou:
- Meu neto, acabo de ter um arranca-rabo sério com meu irmão
Diogo, e você precisa saber o que se passou lá na Fortaleza hoje.
Os animais seguiam emparelhados, sem pressa, enquanto o avô ia narrando os acontecimentos com detalhes.
O rapaz ouvia preocupado, os olhos fitos nas orelhas do cavalo e o pensamento confuso. Sabia que a tempestade viria, mais cedo ou mais tarde, porém era obrigado a admitir que não se preparara, que estava desprevenido e a notícia o surpreendera. Agora urgia tomar uma atitude, pois a moça fora deserdada por sua causa. Por sua culpa ela já não era mais a favorita do avô e isso a faria infeliz a cada dia que passasse na casa grande da fazenda.
"Sô" Antônio terminou a narrativa e ficou observando o neto, que parecia longe dali. Esperava uma resposta que só veio depois de muito pensar e de muitos metros de estrada passarem por baixo dos cascos das montarias.
- Vovô, esses acontecimentos não vão mudar o que eu e Helena já decidimos. Apenas anteciparão as coisas.
- Eu também acho que nada mais há que esperar. Conversei com a moça antes de sair e pude notar o quanto o coronel a magoou. Saí de lá com o coração apertado, meu neto!
- Quando chegarmos à vila terei um conversa com meu pai e decidiremos o que fazer. Vou pedir-lhe para falar com "sô" Manoel e marcar o noivado.
Chegaram à casa da esquina pela hora da merenda e toparam "sô" Alfredo na varanda, sentado na cadeira de balanço a fumar um cigarro depois do café. Levantou-se ao ver os dois cavaleiros, surpreso pelo aparecimento do filho àquelas horas.
- Boas tardes, senhor meu sogro! Vamos entrar.
- Meu pai, - disse João, enquanto levava os animais pra a sombra da jabuticabeira do quintal, - mande providenciar um lanche para o vovô, que ele ainda está sem almoço.
Entraram e "sô" Alfredo, indicando ao sogro uma cadeira à mesa comprida da copa, voltou-se a chamar pelas filhas.
- Elza! Maria! Nadir! Onde estão vocês?
Nadir apareceu, vindo do quarto da mãe, e ele mandou-a por a mesa e servir o avô.
Dali a pouco, João entrou também e sentaram-se os três à mesa comprida onde ficaram por um bom tempo em silêncio, se saber quem puxaria a conversa.
"Sô" Alfredo, por fim, acendeu outro cigarro e começou.
- João, sua mãe não se levantou hoje!
- O que tem ela? – perguntou "sô" Antônio Garcia.
- Meu sogro, - tornou "sô" Alfredo – sua filha não anda bem de saúde há já algum tempo. Queixa-se de tonturas, falta de ar, e às vezes não consegue sair da cama o dia todo.
- Chamou o médico? – perguntou João.
- Sim, o doutor Waldomiro esteve aqui hoje de manhã. Disse que o coração dela está fraco, receitou alguns remédios e mandou que fizesse repouso e evitasse o sal.
João e o avô levantaram-se para ir ver a enferma, retornando quando a mesa estava posta.
Enquanto "sô" Antônio mergulhava num prato fundo com farinha de milho e pedaços de goiabada, João deu início ao assunto de que iam tratar.
- Meu pai, vovô passou pela lavourinha para me dar notícias de uns tantos acontecimentos desagradáveis que tiveram lugar em casa do coronel, na Fortaleza, hoje pela manhã. Resolvemos vir até aqui para pô-lo a par de tudo e também do eu tenciono fazer.
Pediu ao avô que contasse tudo.
O velho, entre colheradas de leite com farinha, repetiu toda a história ao genro, que franzia o cenho enquanto ouvia e, ao fim do relato, fez-se novo silêncio, os três a entreolharem-se como se quisessem ouvir os pensamentos. Ninguém quis comentar as decisões do coronel, visto que qualquer opinião seria simplesmente inútil.
- Pai, - disse João, rompendo o silêncio – em vista de tudo isso, creio que será necessário antecipar esse casamento. Portanto, seria bom falarmos com "sô" Manoel antes que volte para Guaíra e decidir como ficarão as coisas. Se possível faremos o noivado antes mesmo de sua partida.
A decisão estava tomada e "sô" Antônio terminou sua refeição sem dizer mais nada, saboreando cada colher de sua mistura como se comesse pela primeira vez. Viu o fundo do prato, tomou uma xícara grande de café, e sacou dos bolsos fumo, palha e canivete para seu inevitável cigarrinho.
"Sô" Alfredo resolveu mudar de assunto para descontrair o ambiente.
- Sabe, meu sogro, que a vila de Mato Grosso vai virar cidade? Estão até escolhendo o novo nome!
- Não me diga! E qual será o novo nome?
- Ainda não resolveram, mas o compadre Honório deve saber melhor que eu! Ele que herdou do senhor meu sogro essas coisas de política!
- E graças a Deus me livrei dessa amolação!

- X –

Era domingo.
A casa de "sô" Alfredo estava com movimento fora do comum. Da cozinha chegava um ruído de panelas, conversas, risos, onde as mulheres preparavam o almoço.
Entre as futuras cunhadas, com um sorriso de felicidade estampado no rosto, Helena ajudava nas lides de forno e fogão, fuçando aqui e ali, rindo-se das brincadeiras e fofocas normais.
Na sala da frente, outros risos se faziam ouvir. "Sô" Antonio Garcia animava uma roda de moços, com suas histórias de caçadas e pescarias, naturalmente com todos os exageros comuns a todas histórias de caçador e pescador. Eram onças que fugiram, peixes enormes que escaparam, macacos inteligentes que pregavam peças em caçadores experimentados, e outras mentiras hilariantes.
A um canto, alheios às gargalhadas, João e Altino conversavam. A atitude do coronel, de deserdar as netas estava sendo tema de comentários onde quer que os parentes se reunissem, e os dois moços falavam dos acontecimentos daquele dia fatídico.
Altino era um moço de raro senso de justiça. Seu porte magro alto, de rosto sério, bem como suas palavras de indignação ante a injustiça do avô, o confirmavam.
- Não me conformo, João! Não importa qual seja o motivo alegado pelo meu avô, as meninas são suas netas, seu sangue e, de mais a mais, a escolha é somente delas. Nem meu pai iria interferir em nada!
- Para mim pouco importa o que pense ou o que deixe de pensar o coronel. Sua prepotência só antecipou meu noivado e até agradeço por isso. Só sinto pela mágoa que causou em Helena.
- Mas um pedaço de terra a mais para vocês seria de muita ajuda nesse começo de vida, um bom empurrão!
- O bom empurrão que preciso, meu amigo e futuro cunhado, são esses dois braços, a minha saúde e minha vontade de vencer, portanto já possuo tudo o que preciso, graças a Deus.
- Eu sempre admirei sua coragem, meu caro João, e quero que saiba que o ajudarei em tudo o que me for possível.
- Sou muito grato a você, cunhado. Já é de muita valia poder contar com sua amizade!
- Também sinto que preciso ajudar muito a Lica. Não sei se está a par, mas ela e o marido estão comendo o pão que o diabo amassou.
- Helena me disse o que os dois estão passando lá no Rio Grande! Disse que a Lica virou canoeira!
- Sim, João! O Randolpho era alfaiate lá em Guaíra quando os dois se conheceram e meu pai não aprovava o casamento, mas eu lhe fiz entender que o valor de um homem não está na pele nem no bolso, mas na coragem e honestidade e assim "sô" Manoel lhes deu um pedacinho de terra na beira do rio onde vivem agora.
- Se um dia me for possível, Altino, conte comigo para qualquer ajuda que possa dar a eles.


O almoço estava na mesa e Nadir veio chamar a todos.
"Sô" Alfredo e "sô" Manoel, que estavam a conversar, muito sérios, à sombra da jabuticabeira do quintal, ouviram o chamado e trataram de encerrar o assunto.
- Pode ficar tranqüilo, Alfredo. Minha situação hoje é muito boa e poderei dar uma mão aos dois, se for necessário.
- Eu lhe fico muito grato, meu amigo. Minha situação é apertada. A mulher está doente, a família é grande, e só possuo esta casa aqui e um dinheirinho que me sobrou da venda da Limeira e que me rende um juro pouquinho para a gente ir vivendo. Minha sociedade na serraria também não foi grande coisa. Mas tenho muita fé no meu filho João. Ele tem fibra e dará conta do recado!
- Estou muito tranqüilo quanto a isso, Alfredo!
Os dois subiram as escadas da varanda, sem pressa, e se dirigiram à sala de jantar. "Sô" Alfredo cedeu o lugar à cabeceira para o pai da noiva e as moças começaram a servir.
"Sô" Antônio Garcia, na outra ponta de mesa, com um guardanapo enfiado no colarinho a cobrir o peito, lambuzava as mãos e as barbas, agarrado a uma coxa de frango ensopado, enquanto divertia os outros com sua conversa bem humorada. Era mesmo meio destrambelhado, porém de alma bondosa e de uma felicidade infantil e brincalhona que contagiava quem estivesse por perto.
- Agora, - contava ele – a prima Cândida cismou com as ervas do mato e quer curar os outros como se entendesse de medicina. Inda outro dia me mandou ao cerrado para arrancar uma porcaria de mamica-de-cadela, que ela queria fazer uma garrafada. Vocês não fazem idéia de como a raiz daquilo é agarrada!
Todo mundo gargalhava, e ele continuou:
- Bem, eu cheguei e cavuquei um pouco com o enxadão ali em volta do arbusto, agarrei o talo e fiz força ... Nada! Nem aluiu! ... Então tive uma idéia: amarrei com uma corda no rabo do cavalo e puxei pelas rédeas ... Nada! ... Então experimentei montar e cutucar de leve com as esporas! O cavalo fez força até que o rabo começou a estalar e então pensei: “Quer ver que arranca o rabo do Gaúcho e não sai”?
A gargalhada foi geral!
"Sô" Antônio falava entre garfadas e mordidas no pedaço de frango, com seu jeito de menino contando peripécias. Veio a sobremesa e logo depois serviram café, arrematando a refeição, e então o noivo resolveu falar.
- Meus amigos, quero agradecer a presença de todos vocês neste dia tão importante para mim. Quero ainda fazer um agradecimento especial ao vô Antônio, que é uma pessoa fabulosa, a quem muito estimo e que sempre me apoiou e ajudou desde minha infância!
O velho, disfarçadamente enxugou os olhos.
Mas agora, - continuou o noivo – quero pedir oficialmente a "sô" Manoel Osório que me dê a honra de pertencer à sua família, na qualidade de genro.
"Sô" Manoel pigarreou para dar ênfase à resposta.
- É com prazer que acato seu pedido, meu caro João. Eu os abençôo e desejo toda a felicidade do mundo a vocês.
Uma garrafa de champanha apareceu, não se sabe de onde, e todos brindaram aos noivos com vivas e risos, abraços, palmas, num alvoroço de vozes alegres, enquanto o casal, acanhado com as homenagens, se deixava ficar a um canto sorrindo timidamente.
Altino levantou-se, então, em meio ao vozerio, pedindo um pouco de silencio com um gesto e quando todos se calaram ele, um pouco se jeito, anunciou antes os olhares curiosos dos presentes:
- O que quero dizer é breve, já que não sou dado a discursos. Como todos sabem, meu avô, o coronel, por um capricho mesquinho e o desejo de dirigir as vidas alheias impondo sua autoridade, deixou de lado suas duas netas na divisão das terras de sua propriedade apenas por não concordar com suas escolhas. Porém, não seria eu se não tentasse remediar as coisas e por isso já conversei com meu pai quando estávamos a caminho. Como fui favorecido como o neto mais velho, com uma fazenda bem grande, terras que sobram muito para qualquer um, poderei levar a cabo meus planos. Vou dividir minha parte dessa herança. Darei aos noivos, como presente de casamento, um pedaço de cinqüenta alqueires, na divisa com as terras que João já comprou, na pedreira, aumentando assim o patrimônio do meu futuro cunhado que até agora tem provado ser mais que merecedor pela bravura com que se dispõe ao trabalho. Outra parte do mesmo tamanho darei à Lica e ao Randolpho, infelizmente ausentes aqui hoje. O que vai me sobrar é mais que suficiente para minha vida toda e darei à minha fazenda o nome de Santa Umbelina, em homenagem a minha falecida mãe.
No silêncio de surpresa que se seguiu, João levantou-se para abraçar o cunhado. Comovido, com a voz embargada anunciou:
- Não sei como agradecer tamanha generosidade desse amigo e futuro cunhado. Acho então apropriado relatar a todos minha decisão. Chamarei meu pedaço de terra de Fazenda Santa Helena, para que todos os que vierem depois de mim, saibam daquela que começou a vida a meu lado e enfrentou comigo as agruras da construção de nosso futuro, tendo na alma a coragem e o trabalho!
A homenageada corou, recebendo congratulações e abraços de todos e o casamento foi marcado para o mês de maio, quando a lavoura nova desse sua primeira carga e também quando seriam definitivamente anexadas as novas terras.